SACUDIMENTOS E CONJURAÇÕES: COMO LIDAR COM OS FANTASMAS COLONIAIS DAS CIDADES BRASILEIRAS?

Publicado em 27/07/2022 - ISBN: 978-65-5941-759-9

Título do Trabalho
SACUDIMENTOS E CONJURAÇÕES: COMO LIDAR COM OS FANTASMAS COLONIAIS DAS CIDADES BRASILEIRAS?
Autores
  • Ana Cláudia Milani e Silva
  • Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
Modalidade
Resumo expandido
Área temática
GT 06 – Direito à cidade e o combate ao racismo, ao machismo, à LGBTfobia e a outras formas de opressão
Data de Publicação
27/07/2022
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://www.even3.com.br/anais/xicbdu2022/486162-sacudimentos-e-conjuracoes--como-lidar-com-os-fantasmas-coloniais-das-cidades-brasileiras
ISBN
978-65-5941-759-9
Palavras-Chave
Ayrson Heráclito, Tiago Sant'Ana, direito e arte, marcas coloniais, direito à cidade
Resumo
As cidades brasileiras estão saturadas de assombrações, fantasmas e espectros, camadas de existência inscritas na materialidade das violências coloniais, raciais e patriarcais. Este é o tema do presente resumo, tomando como objeto de análise duas obras dos artistas negros baianos Ayrson Heráclito (Sacudimentos, 2015) e Tiago Sant’Ana (Casa de Purgar, 2018). Tomamos como referência a abordagem do Direito e Arte para uma incursão nesses trabalhos, buscando enfatizar o modo como o urbano e a história urbana são neles centrais e conectando-os com aspectos contemporâneos do direito à cidade. Na performance Sacudimentos, realizada em 2015 pelo artista baiano Ayrson Heráclito, essas presenças são tematizadas por meio de dois rituais de limpeza (“sacudimento”, no vocabulário do candomblé) em monumentos arquitetônicos situados nas duas margens do Atlântico, ligados ao tráfico de escravizados. A primeira, na localidade conhecida como “Casa dos Escravos”, no Senegal, e a segunda na Casa da Torre, sede de um latifúndio na Bahia. Reconhecido como um artista exorcista, Heráclito quis revisitar – de forma poética e corpórea – o passado colonial e escravagista desses monumentos arquitetônicos para “sacudir a história, exorcizar os fantasmas”1, no que ele chama de ativismo mítico. O ritual do sacudimento, prática ligada às religiões de matriz africana e comum no recôncavo baiano, busca limpar o espaço, espantar os eguns malfazejos que permanecem entre os vivos. Partindo da compreensão de que os fantasmas e marcas do passado colonial atravessam o tempo e se inscrevem no espaço, a performance lança luz sobre o passado para pensar o presente. Como em toda obra de Heráclito, o sacudimento encarna saberes ancestrais para enfrentar a dor colonial – não só sua memória, mas suas permanências. Pela performance do artista, “uma ação repetida evoca a memória dela mesma, transforma o corpo num lugar de memória, lembrando por meio do ritualismo aquilo que foi perdido”2. Sob a curadoria de Heráclito, a primeira obra individual de Tiago Sant’Ana, “Casa de Purgar”3, propõe também o exercício de “tornar límpidas” as memórias coloniais e apontar suas continuidades, sob uma perspectiva negra. A partir de um inventário elaborado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (IPAC), de 1975, o artista cartografou uma “rota do açúcar” na Bahia. Os antigos engenhos e instalações coloniais da região do Recôncavo deram espaço a performances sobre o trabalho da população negra e o lugar que ela continua a ocupar na sociedade. Em uma das performances, Sant’Ana passa roupas em um antigo engenho com um ferro elétrico novo, fazendo referência ao racismo e exploração que permanecem ainda hoje como marcas do passado escravagista e colonial – aos fantasmas que assombram o presente. E enquanto o sacudimento é um ritual de limpeza, purgar também significa limpar. Na casa de purgar o açúcar passava pelo processo de refino e branqueamento; a limpeza do açúcar associada à estratificação na relação de trabalho movia a máquina colonial baseada na propriedade e na escravização. A limpeza proposta no trabalho de Sant’Ana identifica a perversão desses processos de limpeza e estratificação nos engenhos coloniais e suas reverberações no presente. Uma limpeza contra a limpeza e a esterilização do dispositivo colonial. Os trabalhos dos dois artistas têm em comum o enfrentamento da memória e dos fantasmas do passado colonial, um passado que também está marcado na carne das cidades brasileiras. Não por acaso, tanto em um caso como em outro, construções ligadas ao patrimônio histórico e cultural, herdadas de nossa história escravagista, serviram de suporte para as performances. Tratam-se de monumentos da arquitetura de poder colonial e, como monumentos, carregam em si os signos da repressão, da colonização do espaço e da glória dos conquistadores, oferecidos, em regra, a uma contemplação passiva 4 . Como diria W. Benjamin, não há um monumento da cultura que não seja também um monumento da barbárie e essa ambiguidade é parte da história urbana brasileira. A própria monumentalização desses espaços, muitas vezes, se alia ao encobrimento de seu passado violento, contribuindo para uma memória arquitetônica única e embranquecida. O passado colonial se transforma, assim, em um fantasma que assombra as cidades, uma presença ausência 5 que é sentida ainda hoje pelos corpos marginalizados das populações negras periféricas, mas que tem sua origem ignorada, tornada invisível. Se a urbanização é um processo que envolve múltiplos atores, de interesses muitas vezes conflitantes, sua influência na construção e no discurso sobre a cidade ocorre de maneira assimétrica, que privilegia determinados saberes e os autoriza a marginalizar e invisibilizar “narrativas, territórios e sujeitos que não ocupem lugares privilegiados na hierarquia social” 7. O lugar sociopolítico da pessoa negra, definido pelas intersecções entre raça, classe e gênero, é justamente o que “Casa de Purgar” coloca em questão. É por ocupar um lugar que revela as continuidades da estrutura colonial e racista que a população negra permanece silenciada no discurso e na memória sobre a cidade, deixada física e simbolicamente à margem da produção espaço urbano. De forma estratégica e não acidental, que reproduz as estruturas racistas da sociedade, a história hegemônica da urbanização invisibiliza a participação negra na construção das cidades e encerra uma violência cognitiva que apaga a influência dessa população na formação do território. É interessante perceber que a região do Recôncavo baiano, onde estão localizadas as construções que serviram de cenário para as performances de Heráclito e Sant’Ana, serviu de berço para a urbanização brasileira. Nessa região, como em outros lugares do país, o processo de reterritorialização forçada de povos africanos, resultado da história escravagista e colonial, assentou um conjunto de práticas e relações que contribuiu para a construção de um novo território 8. Tanto na região do Recôncavo como em outras partes do Brasil, a história do povo negro está entrelaçada com a história das cidades brasileiras – seja nos monumentos da exploração colonial, seja no apagamento e criminalização de seus territórios, sua cultura e história. O apagamento dessa relação na história hegemônica do urbanismo expressa a estrutura racista da sociedade e se liga à formação segregada do espaço urbano: como no processo de refino do açúcar na casa de purgar, a cidade também é produzida em uma lógica de separação e de branqueamento. A origem higienista do urbanismo, que, sob um discurso de neutralidade técnica, marginalizou populações e empregou ideais de “melhoria da raça” ao espaço construído 9 , é expressão crua dessa lógica segregadora e racista na construção das cidades. Uma cidade assim construída não apenas reflete as assimetrias envolvidas na produção do espaço, como também as perpetua. Como disciplina de controle, o urbanismo, na mesma medida em que invisibiliza o impacto do racismo e de colonialismo na desigual conformação do território das cidades, contribui para aprofundar a segregação socioespacial, que é também étnico-racial. Desse modo, a separação colonial entre a casa grande e a senzala é marcada no território urbano pela segregação entre centro e periferias, revelando as continuidades de um passado colonial fantasmagórico. O ritual do sacudimento no trabalho de Heráclito visa (ex)conjurar esses fantasmas, trazer para o visível o passado que assombra o presente. É preciso, portanto, antes de tudo reconhecer sua presença, dar-lhes forma, substância e existência. Sem esse primeiro ato de justiça derridiana, é impossível lidar com eles ou endereçá-los 10 . A história das cidades baianas, sobretudo no Recôncavo, está entremeada com a história do próprio candomblé, de maneira que dificilmente alguém se muda para uma nova residência sem antes providenciar um sacudimento ou uma limpeza da edificação. Essa limpeza ou purgação é - segundo nossa tese - um dos modos da justiça espacial, também uma justiça temporal, isto é, uma justiça de transição 11 . Amiúde se encontram ali eguns do passado, mais remoto ou recente, que perturbarão a vida de novos moradores incautos. Algumas vezes, é o espírito de um africano pedindo para ser cultuado. Esses espectros que habitam as casas ao lado dos vivos também sinalizam que, ao contrário do que pregam certos discursos arquitetônicos, a cidade não deve ser vista como “algo vazio ou que pode ser simplesmente reduzido a “cal e pedra”” 12 . Ainda que o espaço da cidade não seja essencialmente libertador ou aprisionador, o conjunto de práticas, objetos, sujeitos (e - por que não? - fantasmas) que o atravessam podem redefini-lo constantemente. Os trabalhos de Heráclito e Sant’Ana aproveitam essa abertura e tomam para si o espaço e a memória da cidade, agenciando sua própria materialidade vibrante, palimpsesto colonial. Heráclito relata que, no sacudimento (realizado com folhas gun, de tipo quente, que espantam energias e espíritos “frios”) da Maison des Esclaves, na Ilha de Goré, antessala da porta do não-retorno, o único egun que encontrou foi o de um antigo traficante de escravos, um espírito colonial em todos os sentidos, um “fantasma da colônia”. Haveria, assim, toda uma ha(u)ntologia urbanística a se escrever sobre esses “fantasmas da colônia” 13 . A cidade alimenta e é sustentada (também) por espectros. Entretanto, à diferença de mães e pais-de-santo, juristas e urbanistas nem sempre se mostram cônscios das heranças que cultivam e dos sacrifícios que rendem a elas. Nem todos os eguns são benfazejos, há que saber identificá-los e cultuá-los da maneira correta para que se tornem aliados, ou então, sacudi-los e aos espaços que povoam, dissipando carregos. A espectrologia como “tropografia de assombrações” 15 dá chance a cartografar essas ancestralidades dos espaços da cidade (e do direito da cidade) e a discernir entre aquelas com que desejamos nos engajar, fazendo enredo, e aquelas de que desejamos nos desvencilhar, despachando-as. Não se trata de apagar nada, porque toda ancestralidade é incontornável, mas de aprender a “esfregá-la a contrapelo” ou a conjurá-la no instante de perigo do presente. Sacudir os carregos coloniais do urbanismo exige “folhas” – nsabas e escritos – quentes, de uma espécie particular, da mesma maneira como não se faz santo sem os ebós e maiongas 16 . Sacudir é desterritorializar determinados espectros. Como sacudir a cidade e o direito à cidade para desterritorializar os fantasmas da colonialidade, do racismo e do patriarcado? A pergunta deve seguir nos assombrando. 1 TESSITORE, Mariana. Ayrson Heráclito, um artista exorcista. ARTE!Brasileiros, 27 jun. 2018. Disponível em: < https://artebrasileiros.com.br/sub-home2/ayrson-heraclito-um-artista-exorcista/ >. Acesso em: 10 abr. 2022. 2 TALA, Alexia. Ayrson Heráclito: o lugar do sagrado. SP-Arte, 3 dez. 2018. Disponível em: < https://www.sp-arte.com/editorial/o-lugar-do-sagrado/ >. Acesso em: 10 abr. 2022. 3 TIAGO Sant’Ana revisita relações de trabalho coloniais em individual. PIPA, 27 mar. 2018. Disponível em: < https://www.premiopipa.com/2018/03/tiago-santana-revisita-relacoes-de-trabalho-coloniais-em-casa-de- purgar/ >. Acesso em: 10 abr. 2022. 4 LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 29. 5 Para Derrida, qualquer origem não é mais do que um rastro, a presença de uma ausência relativa ao que permanece inaudível, invisível, opaco. Nas palavras dele: “Assombrar [to haunt] não significa estar presente, e é necessário introduzir assombro [haunting] na própria construção de um conceito. De todo conceito, começando pelos conceitos de ser e tempo. Isso é o que chamaríamos aqui de hauntology. A ontologia se opõe a ela apenas em um movimento de exorcismo. Ontologia é uma conjuração” (DERRIDA, 1994, p. 202, tradução livre). 6 PEREIRA, Gabriela Leandro. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. São Paulo: ANPUR e PPGAU-UFBA, 2019, p. 24. 7 Ibidem, p. 127. 8 PEREIRA, Gabriela Leandro. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. São Paulo: ANPUR e PPGAU-UFBA, 2019, p. 130. 9 “It is necessary to speak of the ghost, indeed to the ghost and with it, from the moment that no ethics, no politics, whether revolutionary or not, seems possible and thinkable and just that does not recognize in its principle the respect for those others who are no longer or for those others who are not yet there, presently living, whether they are already dead or not yet born. No justice—let us not say no law and once again we are not speaking here of laws—seems possible or thinkable without the principle of some responsibility, beyond all living present, within that which disjoins the living present, before the ghosts of those who are not yet born or who are already dead, be they victims of wars, political or other kinds of violence, nationalist, racist, colonialist, sexist, or other kinds of exterminations, victims of the oppressions of capitalist imperialism or any of the forms of totalitarianism” (DERRIDA, 2015, xviii). 10 Limpezas rituais são prescritas em diversos contextos de violência. Em Moçambique, expurgar os fantasmas da guerra encerrada em 1992 e curar as feridas que ela deixou abertas são parte da missão dos curandeiros vanyamusoro (GRANJO, 2007). Especialistas em uma espécie de espectrologia da justiça de transição, são eles que conduzem os rituais e as “medicinas” destinados a apaziguar os mortos do combate e permitir que o país se assente numa convivência que alguns chamam “democracia”. 11 SOUSA JUNIOR, Vilson Caetano de. Na palma da minha mão: temas afro-brasileiros e questões contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 80. 12 HADDOCK-LOBO, Rafael. Os fantasmas da colônia: notas de desconstrução e filosofia popular brasileira. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020. 13 Ibidem, p. 106. 14 HOSHINO, Thiago A. P. O direito virado no santo: enredos de nomos e axé (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2020, p. 333.
Título do Evento
XI Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico
Cidade do Evento
Salvador
Título dos Anais do Evento
Anais do XI Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

SILVA, Ana Cláudia Milani e; HOSHINO, Thiago de Azevedo Pinheiro. SACUDIMENTOS E CONJURAÇÕES: COMO LIDAR COM OS FANTASMAS COLONIAIS DAS CIDADES BRASILEIRAS?.. In: Anais do XI Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico. Anais...Salvador(BA) UCSal, 2021. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/xicbdu2022/486162-SACUDIMENTOS-E-CONJURACOES--COMO-LIDAR-COM-OS-FANTASMAS-COLONIAIS-DAS-CIDADES-BRASILEIRAS. Acesso em: 16/05/2025

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