O CASO CLÉLIA E O ENFRENTAMENTO DE UMA MEMÓRIA INDIZÍVEL POR MEIO DA ARTE

Publicado em 23/12/2021

Título do Trabalho
O CASO CLÉLIA E O ENFRENTAMENTO DE UMA MEMÓRIA INDIZÍVEL POR MEIO DA ARTE
Autores
  • Márcia Beatriz Bello Pacheco
  • Josaida Gondar
Modalidade
Resumo Expandido e Trabalho Completo
Área temática
GT 08 - Memória, Narrativas e Discursos
Data de Publicação
23/12/2021
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://www.even3.com.br/anais/xc22021/433631-o-caso-clelia-e-o-enfrentamento-de-uma-memoria-indizivel-por-meio-da-arte
ISSN
Palavras-Chave
Memória, esquecimento, silêncio, trauma, narrativas, teatro, elaboração, criação
Resumo
Jô Gondar Professora Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO jogondar@uol.com.br Márcia Beatriz Bello Pacheco Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO marciabeatriz@edu.unirio.br INTRODUÇÃO O trabalho ora apresentado traz o caso de Clelia que, aos setenta anos de idade, pôde redimensionar sua experiência traumática de viúva de um suicida ao elaborar suas memórias através da encenação de uma peça teatral. Acompanharemos as razões que fizeram com que Clelia escolhesse ensaiar o monólogo “Antes do Café”, de Eugene O´Neill e, posteriormente, apresentá-lo numa clínica de reabilitação para dependentes químicos do Rio de Janeiro. O tema se alinha com a proposta do GT8 quanto à apresentação de pesquisas relacionadas aos discursos e narrativas no processo de construção de memória. Especificamente, neste trabalho, descreverei o contexto com que foram reelaboradas as memórias traumáticas de Clelia durante os ensaios, circunscritos pela não-revelação de sua tragédia até minutos antes da estreia da peça. Veremos em quê sentido a criação de uma personagem fictícia teve a função de desvelar a dor existencial de Clélia e o porquê de ter escolhido estrear naquele local. Também contarei com o apoio de minhas lembranças das aulas e do processo de ensaios. 1 - Fundamentação Teórica Selecionamos um caso real para este trabalho sobre memória silenciada, “indizível”, diante de uma experiência traumática e visitamos os seguintes campos: Sociológico - utilizamos os textos de Michael Pollak, principalmente “A gestão do indizível” e “Memória, esquecimento, silêncio”, que nos serviram de suporte para a análise que nos levou à impossibilidade de Clélia em expor a verdadeira razão de querer ensaiar e apresentar o monólogo “Antes do Café”. Clélia elaborou seu drama existencial a partir do drama teatral, encenando uma peça que teve como desfecho a mesma tragédia de sua vida. Com base no olhar de Pollak no que se refere à memória, esquecimento e respectivo silêncio relacionado ao luto e dor, analisamos como se deu o enfrentamento de uma memória traumática através da forma com que Clelia construiu a personagem de um clássico da dramaturgia universal. Vislumbramos os possíveis porquês de sua impossibilidade de trazer suas memórias para o processo de ensaios e tentamos redimensionar a sua experiência, a princípio “indizível”, posteriormente revivida através da arte. Artístico-dramatúrgico: no decorrer deste trabalho, algumas partes de "Antes do Café" pontuaram a narrativa, além de minhas lembranças enquanto professora de Clélia e posterior diretora do espetáculo. Também neste campo citamos o conceito nietzscheano de “terceiro olho do teatro”, encontrado na obra “Aurora”, segundo o qual o homem deve enfrentar a tragédia de sua vida a partir de um olhar distanciado, de fora da cena, como espectador de sua própria tragédia. Neste ponto, houve uma interseção entre os campos filosófico e artístico. Ademais, trouxemos contribuições de autores teóricos do teatro, que aportaram um panorama sobre o tema do teatro-autoral. Isto para que tenha sido possível entrarmos em contato com a metodologia baseada na construção de uma dramaturgia a partir de experiências pessoais, geralmente representadas por não-atores. Fizemos um paralelo desta técnica com o processo de ensaios de Clélia, que se deu no sentido inverso, uma vez que a peça de O’Neill parecia retratar a tragedia de sua vida. Da Memória Social: privilegiamos o aspecto de memória pelo viés de criação como resposta à experiência traumática que permeou a totalidade deste estudo, mais especificamente quanto ao silêncio rompido e a consequente reelaboração da dor por meio da arte. Para falarmos sobre alternativas para o enfrentamento de situações referentes a traumas contamos com o artigo “Memória Social e situação traumática”, escrito pelos professores do Programa de Memória Social da UNIRIO, Diana de Souza Pinto e Francisco de Ramos Farias. 2 - Resultados alcançados Por não se tratar de uma pesquisa com objetivo a ser alcançado mas, pelo contrário, um resultado baseado em processo de ensaios e posterior estreia de uma peça, apresento em linhas gerais os encontros primeiramente de aulas e, posteriormente dos ensaios de Clelia. Em março de 1996 anunciei aulas de teatro para a terceira idade a serem realizadas no salão de um clube do Rio de Janeiro. Durante dois meses não houve interessados. Em maio do mesmo ano, a senhora Clelia telefonou para propôr ter aulas particulares, o que foi rechaçado. Clelia passou a ligar mensalmente e em setembro perguntou se eu abriria turma com apenas duas alunas. Proposta aceita, na semana seguinte, outra senhora se inscreveu para as aulas. As aulas: Durante um mês as aposentadas se reuniam para as aulas, duas vezes por semana. Clélia vivia a 110 km do local das aulas. Nas aulas eram propostos exercícios respiratórios, corporais e vocais, assim como o básico de técnicas de interpretação. Na metade de outubro, a segunda aluna optou em deixar o grupo por preferir voltar às aulas de dança do ventre. Com a saída da colega de Clélia, cogitei cancelar as aulas seguintes, proposta refutada, pois desde o primeiro telefonema o objetivo de Clélia era ser dirigida por mim em um monólogo, algo até então não revelado. Selecionei alguns monólogos, na maioria comédias leves que pudessem ser do seu interesse. Outra opção foi « Antes do Café » que, apesar de muito densa, foi a escolhida por Clélia, assim que tomou conhecimento dos conflitos da personagem. Os ensaios: Durante um mês ensaiamos diariamente sob a condição de que Clélia se mudasse para o Rio de Janeiro. Ao longo de todo o processo de criação Clélia não comentou sobre a razão de ter escolhido tal peça para ensaiar. No penúltimo ensaio antes da estreia Clélia esqueceu suas falas várias vezes, um inegável boicote ao trabalho. No dia seguinte, viajamos para sua cidade natal, onde ensaiaríamos no espaço conseguido para a apresentação, na clínica para tratamento de dependentes químicos. A estreia: Tarde de sábado, plateia cheia, Clélia no camarim pede minha presença antes entrar em cena. Relata seu drama que será interpretado sob o disfarce de uma personagem: Clelia, assim como a Sra. Rowland, era viúva de um suicida. Cai o pano. Conclusões O Caso Clélia permitiu acompanharmos a trajetória da elaboração de uma memória silenciada durante anos. Uma vez que foi proporcionada a possibilidade de enfrentar tal memória por meio de uma narrativa vivenciada através de uma personagem, Clélia pôde reinventar sua história. Utilizando-se de um clássico da dramaturgia, revisitar seu drama existencial passou a ser uma tarefa pertencente ao coletivo e não mais uma circunscrição do plano individual. E ainda, ao apresentar o resultado de sua criação a uma plateia com questões afins, Clélia pôde expor, com o subsídio da arte, o que até então fora calado. Um segredo guardado até o último minuto antes do abrir das cortinas. Um lufar de vida que esperou em silêncio o terceiro sinal. A vontade de narrar sua história, mesmo que através da voz de uma personagem. Clélia transformou o indizível em arte. Recriou o grito engasgado, repleto de dor, em potência artística. Vimos também o papel importante da nova cena contemporânea que tem privilegiado investigações baseadas em performances autoficcionais, teatro documentário e as respectivas questões que envolvem os campos de estudos transdisciplinares. O caso de Clelia nos serviu de objeto de estudo uma vez que se trata de uma história real contada através de uma peça teatral, mesmo que esta não tenha sido baseada naquela. Foi possível também trazermos à luz o instigante encontro de múltiplos saberes, a característica transdisciplinar da Memória Social apontando para a coexistência do real/fictício dentro desta linha de tempo não-cronológica e a narrativa baseada na possibilidade de uma memória criativa, de um passado na aposta de um futuro renovado. Nota 1: um mês após a catártica estreia, recebi um telefonema da filha de Clélia em agradecimento pela transformação que todos percebiam desde sua apresentação naquela clínica de reabilitação. Clélia já não era a mesma. A força da quebra do silêncio havia recriado relações. A família se reorganizou. O indizível não tinha mais lugar naquela memória. Todos puderam recriar seus futuros. Nota 2: em 2019 fui convidada a escrever o Argumento do Caso Clélia, programado para ser filmado no ano de 2020, pouco antes do confinamento pela COVID 19. Referências bibliográficas CARLSON, M. Expansão do teatro moderno rumo à realidade. ARJ – Art Research Journal / Revista de Pesquisa em Artes, v. 3, n. 1, p. 1-19, 17 maio 2016. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/8429/6804 FARIAS, F e PINTO, D. Memória Social e situações traumáticas. In Revista Morpheus: revista de estudos interdisciplinares em memória social, Rio de Janeiro, v. 9, n. 15, 2016, p. 177-202. MARINA, H. O Teatro, É Verdade? Ponderações sobre o real na cena contemporânea. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 1, e92337, 2020. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/ POLLAK, M. A gestão do indizível. WebMosaica. Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall. Porto Alegre, v. 2, n. 1, jan-jun 2010. _______. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.3, 1989, p. 3-15. Disponível em http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf
Título do Evento
10º CONINTER - CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES
Título dos Anais do Evento
Anais do 10º CONINTER - CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

PACHECO, Márcia Beatriz Bello; GONDAR, Josaida. O CASO CLÉLIA E O ENFRENTAMENTO DE UMA MEMÓRIA INDIZÍVEL POR MEIO DA ARTE.. In: Anais do 10º CONINTER - CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES. Anais...Niterói(RJ) Programa de Pós-Graduação em, 2021. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/xc22021/433631-O-CASO-CLELIA-E-O-ENFRENTAMENTO-DE-UMA-MEMORIA-INDIZIVEL-POR-MEIO-DA-ARTE. Acesso em: 06/05/2025

Trabalho

Even3 Publicacoes