AS VOZES DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL: ANÁLISE DA NARRATIVA DE UMA YOUTUBER FITNESS DO LAR

Publicado em 22/03/2023 - ISBN: 978-85-5722-682-1

Título do Trabalho
AS VOZES DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL: ANÁLISE DA NARRATIVA DE UMA YOUTUBER FITNESS DO LAR
Autores
  • Raíssa Vieira Ribeiro Ramos
Modalidade
Resumo expandido - Relato de Pesquisa
Área temática
Comida e cultura: os múltiplos olhares sobre a alimentação
Data de Publicação
22/03/2023
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://www.even3.com.br/anais/venpssan2022/493977-as-vozes-da-alimentacao-saudavel--analise-da-narrativa-de-uma-youtuber-fitness-do-lar
ISBN
978-85-5722-682-1
Palavras-Chave
alimentação saudável, comunicação, equidade
Resumo
RESUMO EXPANDIDO - RELATO DE PESQUISA - COMIDA E CULTURA: OS MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE A ALIMENTAÇÃO AS VOZES DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL: ANÁLISE DA NARRATIVA DE UMA YOUTUBER FITNESS DO LAR Raíssa Vieira Ribeiro Ramos (raissaramos.contato@gmail.com) A 2a edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, uma das principais estratégias para implementação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição, afirma que a alimentação adequada e saudável é um direito humano básico e, em uma abordagem educativa para profissionais de saúde e cidadãos, expõe a inviabilidade na determinação de um único padrão alimentar para os brasileiros, uma vez que a cultura alimentar brasileira tem sido construída heterogeneamente, pelos atravessamentos trazidos pelo período colonial, demais imigrações e, contemporaneamente, a chamada globalização (CONTRERAS; GRACIA, 2011; BRASIL, 2014). Nesse contexto, diferentes perspectivas do que seria considerado saudável são inevitáveis perante os diferentes modos de lidar com a relação entre saúde e doença das sociedades, delineadas conforme os demais contextos históricos e sociais (CZERESNIA; MACIEL; OVIEDO, 2013). Desse modo, foi tomada a hipótese de que a adoção do adjetivo saudável como um conceito, estruturado por métricas e/ou condições específicas que definam o estatuto de saúde, seja capaz de condicionar um sentido valorativo que desqualifica práticas divergentes, sobretudo quanto à alimentação. A determinação do que seriam práticas alimentares saudáveis por distintas vozes em disputa, potencializada pelos dispositivos midiáticos de interação social, se mostra fator de atenção para a Saúde Pública. Pois, se por um lado tais determinações podem ser capazes de reforçar e popularizar intervenções danosas e não comprovadas cientificamente, por outro podem promover iniquidades caso não considerem as estratificações sociais brasileiras que implicam diretamente no cuidado em saúde. Assim, a partir da pesquisa desenvolvida para a dissertação de mestrado intitulada “Alimentação saudável em tempos de Covid-19: circularidade e sentidos em um contexto de pandemia” (RAMOS, 2021), foi trazido um relato da análise realizada em uma dentre as 10 principais obras midiáticas sobre alimentação saudável (AS) em circulação no Youtube, nos meses iniciais da pandemia de Covid-19 no Brasil. Desse modo, este trabalho objetiva relatar como um imaginário sobre AS pode ser composto por distintas informações e vozes, representando fator de atenção para a defesa do direito à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Foi elaborada uma metodologia voltada para aspectos comumente invisibilizados nas discussões científicas, a micro-história, conforme os postulados de Ginzburg (2006; 2012). Partiu-se na busca do termo “alimentação saudável” na plataforma on-line Youtube, utilizando suas próprias ferramentas para construção do corpus, em que foram selecionados os 10 vídeos com maior número de visualizações, entre março e junho de 2020, quando foi finalmente publicada a Portaria no 1.565, de 18 de junho de 2020 do Ministério da Saúde, com as primeiras orientações oficiais para enfrentamento da pandemia de Covid-19. Após a transcrição dos vídeos, e por meio do aporte teórico analítico proporcionado pela associação da Semiologia dos Discursos Sociais (PINTO, 1994) aos procedimentos metodológicos apresentados por Verón (2004) e Araújo (2004), foram evidenciadas as marcas enunciativas presentes nas narrativa para identificação de certas significações em detrimento de outras, tendo em vista que a comunicação configura uma arena de disputas. Então, para o presente trabalho trago uma síntese da análise feita sobre o vídeo de Cristiane Alves (2020), intitulado “A realidade de dona de casa/Alimentação saudável e compras da semana”, que mostrou lugar de interlocução central em comparação às outras narrativas do corpus, e, portanto, significativo potencial de circulação de sentidos sobre alimentação e saúde. Por se tratar do compartilhamento da rotina de alimentação e atividade física da autora, realizadas em sua própria casa, as marcas enunciativas saltam da narrativa de modo não linear, de maneira que o conjunto das falas, frases e imagens compuseram os apontamentos realizados. A partir de então, aponto dois posicionamentos caros à presente discussão: por um lado o entendimento sobre AS estaria relacionado à existência de uma “comida de verdade”, uma padronização do que seria comida de fato; por outro, estaria relacionado à conquista de um ideal de aparência, caracterizado por um corpo magro e com musculatura evidente. Como em uma conversa, propondo uma familiaridade com seus interlocutores, Cristiane descreve que foi à feira local e exibe os alimentos comprados. Afirma que é lá que se encontram “coisas” saudáveis, exibindo os alimentos in natura e minimamente processados que adquiriu, indicando os preços favoráveis e disponibilidade de certos alimentos pela sazonalidade e regionalidade, bem como a necessidade de higienização e sanitização antes do consumo, corroborando as recomendações do guia alimentar brasileiro para uma alimentação saudável e adequada (BRASIL, 2014). Durante a exibição do preparo do seu almoço, Cristiane destaca o fato não ter adicionado açúcar ao suco e nem gorduras ao preparo da carne, nos sugerindo que para uma AS é necessário atentar às quantidades de açúcares e gorduras adicionados no preparo das refeições, além de depositar importância ao se descartar a casca do abacaxi devido à necessidade de se evitar o consumo de agrotóxicos. Observam-se, novamente, similaridades com o Guia Alimentar. Porém, a adaptação pela youtuber diante dos malefícios dos agrotóxicos, impregnados nas frutas e hortaliças não cultivadas por meio da agricultura orgânica, pela estratégia de tentar eliminar a toxicidade acumulada ao retirar a camada externa da fruta, não condiz com as evidências científicas. Apesar do evidente desconhecimento do potencial de fixação de agrotóxicos nas partes internas dos vegetais, tal atitude indica uma valorização da aquisição de alimentos produzidos pela agricultura orgânica que, possivelmente, não seja tangível a sua realidade. Em continuidade, Cristiane segue sua preparação com a adição de alimentos processados, sem expor como eles se inserem em uma AS, apenas os adiciona, como se já fosse determinado que estariam incluídos nesse padrão de alimentação. O próprio guia alimentar não condena o consumo de tais alimentos, mas alerta aos teores de conservantes adicionados, reconhecendo seu consumo pela população diante dos diferentes hábitos alimentares possíveis, conforme cada situação de vida. Ainda assim, sugerimos que o discurso caracterizado pelas ações da youtuber seja atravessado pela polifonia existente em torno da “modernização alimentar”, que além de favorecer um maior consumo de alimentos processados e ultraprocessados devido sua praticidade, também conduz para a neutralização da problemática da redução de variedades de produtos agrícolas locais, naturalizando o consumo de tais alimentos em razão de seu baixo custo e acesso facilitado. Enquanto aguarda o cozimento, Cristiane resolve comer uma tapioca adquirida na feira. O ponto que destaco aqui vai além da popularidade que tal alimento aparenta ter na sua localidade. Ao ser realizada uma simples busca em provadores de pesquisa na internet, blogs, revistas, programas de TV, dentre outros, podemos observar como a tapioca não é caracterizada apenas como uma preparação típica das regiões Norte e Nordeste do Brasil. Ela tem sido recorrentemente situada no contexto de um tipo de alimentação em que seja necessária a restrição do glúten, em que a linha que divide se isso é necessário por desordens relacionadas, ou por ser um dos modos de obter o emagrecimento e/ou manutenção do peso, é muito tênue. Nessa perspectiva, destacamos o modo específico como Cristiane exibe a tapioca e pergunta “Tá focando?”, de maneira popularmente dita por blogueiras em tutoriais de automaquiagem em vídeo, que rende populares sátiras de humor pela padronização de tal ação no “mundo blogueirístico”. É sugerida relação desse modo de exibição com tais tutoriais que, geralmente, se dedicam a mostrar produtos adquiridos/recebidos e suas opiniões sobre eles. Isso nos faz questionar se esse consumo se trata de parte da sua cultura alimentar, regionalizada, ou de uma cultura alimentar midiatizada pelos efeitos relacionados ao glúten, ou uma terceira via: a junção de ambas em prol de uma formulação própria. Assim, as afirmações de Cristiane dialogam intrinsecamente com as recomendações do guia brasileiro, ainda que este não tenha sido mencionado em quaisquer partes da narrativa e descritores de vídeo. Porém, sigamos para um contraponto. Como desponta já no título do vídeo, se trata de uma mulher responsável pelo lar, sugerindo uma interpelação às mulheres que possuem objetivos e realidades similares, mas que possam estar à margem do que seria o “universo fitness”, em referência ao termo utilizado na descrição do vídeo. A ênfase no termo “dona de casa”, bem como a utilização de referências visuais nas cenas iniciais, em que aparece usando roupas esportivas em frente ao que seria uma casa de classe média baixa, sugere uma estratégia, ainda que não consciente, de uma identificação social para com aquelas que possam ser distanciadas dos grupos que mais abordam tais temas midiaticamente. É sugerido que tal promoção de si seja capaz de estimular a articulação com um universo de pessoas que não frequentam academias, de modo que o espaço da residência, da casa, associada à exemplificação da possibilidade de uma rotina fitness frente as cotidianidades da vida simples. Contrariamente aos discursos midiáticos que incitam e ostentam o uso privilegiado de produtos e serviços, é sugerido que haja o desencadeamento de uma esfera de íntima familiaridade, visando uma caracterização alternativa ao fitness. É inquestionável a importância da associação entre atividade física e alimentação equilibrada para a obtenção/manutenção da saúde. Contudo, a maneira que a autora associa a AS às referências construídas sobre o que seria um corpo ideal, marcado pelo uso do termo “fitness”, configura especial ponto de discussão. A deposição da condição de uma aparência específica e excludente ao estado de saúde é capaz de desencadear inúmeras iniquidades no que tange aos princípios para o que seria a SAN (JACOB, 2017). Todavia, a autora também aponta que a sua “boa forma” e AS se dão sem o uso de suplementos alimentares. Nesse ponto, é possível observar certa resistência e negociação quanto aos modos de ser e agir no que se refere à adesão ao estilo fitness. Ainda que nesse universo tal consumo seja comum, e até indispensável, a afirmação dela indica o conflito em reconhecer-se nesse grupo. Observamos, então, como a construção de uma perspectiva de alimentação e saúde pode ser atravessada por inúmeros discursos de diferentes fontes e vozes, que podem ser tomados também pela recusa ou negociação, e não mera aceitação pela imposição. Tendo em vista os pontos destacados anteriormente, é sugerido que a ideia geral apresentada por ela sobre o que seria uma AS se dá pela justaposição de perspectivas que se complementam e disputam entre si, complexificando o delineamento de que padrão, afinal, seria esse. Ainda que demonstre possível resposta às limitações do universo fitness, seu posicionamento parte também de um conjunto de ideias que corporificam a saúde em um modelo socialmente valorizado, especialmente nos meios de comunicação. Nesse sentido, apesar do uso do termo “comida de verdade” ser recorrente dentre os discursos proferidos na luta pelo direito humano à alimentação adequada, que tem como um de seus instrumentos o guia alimentar mencionado, sugerimos que seu uso possa suscitar a ideia de uma alimentação excludente, não equitativa, dependendo de quem o profere. Isto devido ao modo como tem operado a hegemônica lógica da autorresponsabilização de si, em que a busca da saúde pela obtenção/manutenção de um estilo de vida saudável, a partir das concepções do cuidado em saúde derivadas da I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em 1986. Inicialmente, tal concepção tratava da inclusão da dimensão socioambiental e responsabilidade estatal na determinação causal da saúde-doença, porém, repercutiu majoritariamente em acordo com um movimento neoliberal de despolitização da sociedade, ao vincular saúde e longevidade às escolhas individuais. Tal perspectiva pode ser encontrada tanto em discursos midiáticos mercadológicos, que ofertam serviços e produtos para tal, valorizados no universo fitness, quanto por aqueles proferidos por instâncias governamentais, uma vez que configura possiblidade de menor custo econômico em saúde pública (CASTIEL; SANZ-VALERO; VASCONCELLOS-SILVA, 2011). Uma “comida de verdade”, nesses moldes, não requer garantia de direitos, mas apenas o dever de realizar escolhas saudáveis, independentemente dos determinantes sociais e ambientais das populações. De maneira que, por meio de estratégias comunicativas, a sensação de pertencimento a determinado sistema de valores e crenças é estimulado àqueles que forem capazes de aderir a tal modelo, como um vocativo à apropriação de uma identidade cultural, excluindo os que não conseguirem (KRAEMER et al., 2014). Contudo, na integralidade da narrativa, é observada a construção do imaginário de uma AS majoritariamente equitativa, em conformidade com o guia alimentar, mas evidenciando desafios e limitações que possam surgir na tentativa de cumprir todas as suas recomendações, por exemplo, a escolha e acesso aos alimentos seguros e isentos de agrotóxicos. Desse modo, a youtuber nos mostra como sua ideia de AS foi formulada conforme as mediações nas quais está inserida, sejam elas originadas das instituições de saúde, a tradição familiar e cultural, a formação educacional, a religião ou a própria cultura, que desponta dos dispositivos midiáticos e que, por suas lógicas e mecanismos, se mostram formadores de práticas e modos de ser no mundo. Assim, foi possível vislumbrar como os aspectos comunicacionais na determinação da AS devem ser considerados nos estudos sobre e em ações para a garantia da SAN, uma vez que determinadas formulações, conforme atravessamentos múltiplos, poderiam invisibilizar a alimentação adequada como um direito humano, especialmente em um contexto de agravo em insegurança alimentar. Portanto, dentre as vozes que emanam da narrativa de Cristiane Alves, foram observadas três vozes principais: a voz da Ciência da Nutrição, mas dividida no que seria uma abordagem voltada para a SAN e Saúde Coletiva e uma outra, baseada na promoção de saúde pela adesão a um estilo de vida saudável; a voz dos dispositivos midiáticos, ou Tecnologias de Informação e Comunicação, pelo modo como atende a um formato específico de tutoriais de blogs; e possivelmente a voz do Mercado, quanto à razão pela qual consome industrializados diante do valor dado aos alimentos in natura e minimamente processados. Dessa forma, pelas vozes que se complementam ou que conflitam entre si e promovem a circulação de sentidos específicos sobre alimentação, a ideia geral de AS formulada pela autora, ainda assim, tem forte diálogo com as orientações do Guia Alimentar para a População Brasileira. Além disso, é possível que o vídeo tenha potencial de representar ou complementar, em alguma medida, um material educativo para o entendimento e popularização dessas recomendações, pela semelhança e informalidade no relato do cotidiano de uma cidadã brasileira e pelo fato de ser um material capaz de circular por outras plataformas digitais e atingir a grupos diversos. Outrossim, ainda que a narrativa tenha sido documentada metodologicamente, para termos a certeza de que Cristiane quis atribuir os sentidos identificados à sua fala, ou mesmo identificar inocência em tal composição, seria necessária a realização de uma pesquisa de campo. Entretanto, ao nos ancorarmos em um aporte metodológico que considera marcas enunciativas, nossa análise se mostrou fecunda ao demonstrar como inferências discursivas podem compor o imaginário do que seria e como obter a saúde. E, portanto, reforçar a importância de estudos interdisciplinares em SAN que contemplem a dimensão da Comunicação em Saúde. Por fim, destaco que a realização da pesquisa, na íntegra, só foi possível devido ao financiamento proporcionado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Ministério da Educação, Brasil. Bem como, declaro ter sido realizada sob ausência de conflito de interesses políticos e/ou de caráter comercial.
Título do Evento
V Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Título dos Anais do Evento
Anais do V Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

RAMOS, Raíssa Vieira Ribeiro. AS VOZES DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL: ANÁLISE DA NARRATIVA DE UMA YOUTUBER FITNESS DO LAR.. In: Anais do V Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Anais...Salvador(BA) UFBA, 2022. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/VEnpssan2022/493977-AS-VOZES-DA-ALIMENTACAO-SAUDAVEL--ANALISE-DA-NARRATIVA-DE-UMA-YOUTUBER-FITNESS-DO-LAR. Acesso em: 20/06/2025

Trabalho

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