COMER EM COMPANHIA: UMA COMUNICAÇÃO RUIDOSA?! PERSPECTIVAS DE SURDOS SINALIZANTES SOBRE SUA COMENSALIDADE

Publicado em 22/03/2023 - ISBN: 978-85-5722-682-1

Título do Trabalho
COMER EM COMPANHIA: UMA COMUNICAÇÃO RUIDOSA?! PERSPECTIVAS DE SURDOS SINALIZANTES SOBRE SUA COMENSALIDADE
Autores
  • Juliana da Silva Lima
  • Juliana Pereira Casemiro
  • FABRICIA JUNQUEIRA DAS NEVES
Modalidade
Resumo expandido - Relato de Pesquisa
Área temática
Comida e cultura: os múltiplos olhares sobre a alimentação
Data de Publicação
22/03/2023
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://www.even3.com.br/anais/venpssan2022/493694-comer-em-companhia--uma-comunicacao-ruidosa-perspectivas-de-surdos-sinalizantes-sobre-sua-comensalidade
ISBN
978-85-5722-682-1
Palavras-Chave
comensalidade, guia alimentar, surdos
Resumo
O Guia Alimentar para a População Brasileira configura-se como um instrumento de apoio às ações de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) favorecendo a promoção da alimentação adequada e saudável para a população brasileira. Ele dedica um capítulo sobre o ato de comer e a comensalidade e recomenda o comer em companhia. Neste sentido, este documento sustenta que compartilhar o comer e as atividades envolvidas nesse ato é uma forma de criar e desenvolver relações entre pessoas, sendo o comer parte natural da vida social (BRASIL, 2014). A comensalidade fala sobre o convívio à mesa, que deriva do latim “mensa” revelando estruturas da vida cotidiana. E se a mesa é metáfora da vida, ela representa não apenas o pertencimento a um grupo, mas também as relações que se definem nesse grupo (MOREIRA, 2010; MONTANARI, 2008). No encontro à mesa encontramos afeto e afinidades, mas também disputas, relações de poder e conflitos. Nem sempre a comensalidade compreende um momento benéfico, podendo ser também de conflito da vida diária. Comer junto nem sempre expressa socialização (SANTOS E OLIVEIRA, 2020) e nem sempre é possível, especialmente no contexto em que vivemos nos últimos dois anos, referente à crise sanitária da Covid-19, quando as recomendações de isolamento social fizeram com que a comensalidade e a sociabilidade entre pessoas fossem modificadas, inclusive entre pessoas surdas. Relacionando as reflexões sobre comensalidade e a temática da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), cabe ressaltar a necessidade de que as práticas alimentares promotoras de saúde tenham como base o respeito à diversidade cultural. O Marco de Referência em Educação Alimentar e Nutricional para Políticas Públicas destaca, em seus princípios, a valorização da cultura alimentar local e o respeito à diversidade de opiniões e perspectivas, considerando a legitimidade dos saberes de diferentes naturezas (BRASIL, 2012). Dentro deste espectro das diversidades inclui-se a necessidade de um olhar diferenciado para pessoas com deficiência (PcD), e neste estudo direcionamos nosso olhar aos surdos. No Brasil, segundo dados do Censo de 2010, existem 344.206 pessoas surdas, que dependem de outras formas de comunicação que não seja a auditiva (IBGE, 2010). Surdo é aquele que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por experiências visuais. Esta é a definição de pessoa surda pelo Decreto 5626/2005, que regulamenta o uso da Língua de Sinais Brasileira (Libras) que foi reconhecida como língua oficial no Brasil em 2002, através da Lei 10436 (BRASIL, 2005; BRASIL 2002). O surdo consegue estabelecer melhor comunicação através da língua de sinais, e a mensagem oral feita pela língua portuguesa pode deixar “uma defasagem de até 70% do entendimento da mesma” (BRASIL, 2017). A dificuldade na compreensão dos surdos em função da comunicação pode trazer situações de insegurança alimentar e nutricional para o mesmo sendo, portanto, um desafio ampliar o acesso à informação sobre a alimentação adequada e saudável para eles. Conhecer o contexto cultural e alimentar em que o surdo está inserido e a forma como o mesmo percebe a sua comensalidade é um ponto de partida para um diálogo sobre suas práticas alimentares. O objetivo do presente trabalho é apresentar aspectos da comensalidade sob a perspectiva de um grupo de surdos, refletindo sobre como a mesa pode caracterizar-se como oportunidade de sociabilização ou por um momento de exclusão. Este resumo é parte de dissertação produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Segurança Alimentar e Nutricional (PPGSAN/Unirio) desenvolvida a partir de pesquisa qualitativa com oito surdos sinalizantes, em que a relação à mesa entre surdos e entre estes e ouvintes fez parte de um roteiro de entrevista semiestruturada. As entrevistas foram realizadas em 2021, de forma virtual, em função da pandemia da Covid-19, em Libras, para melhor compreensão dos entrevistados, sendo gravadas em vídeo e transcritas posteriormente para a língua portuguesa. A análise dos dados seguiu a técnica de análise temática proposta por Minayo (2014). Os entrevistados relataram suas percepções sobre o comer à mesa entre ouvintes e surdos, demonstrando haver diferenças na forma como se estabelece o diálogo à mesa. Para Fischler, a experiência do comer é fundadora da identidade individual e coletiva, em que se registra seu pertencimento a uma cultura ou a um grupo, seja pela afirmação de sua especificidade alimentar ou pela diferença em relação aos outros (SANTOS, 2008). Os entrevistados atribuíram uma forma diferente de comensalidade no que diz respeito aos diálogos estabelecidos à mesa, tanto no jeito de conversar, que consideram diferente entre surdos e ouvintes, como sobre a forma como se conversa durante a refeição, na fala do ouvinte ou na sinalização do surdo. Em um dos relatos foi descrita a possibilidade que o ouvinte tem para conversar enquanto come, mas que o surdo precisa pedir para aguardar enquanto come para depois sinalizar. Em função da necessidade de reservar o sentido da visão para que a conversa flua, não há a possibilidade de comer e conversar ao mesmo tempo, pois o sentido da visão está voltado para a atenção ao comer e as mãos à manipulação dos talheres. Já em um outro relato, a cena descrita caracteriza certa vantagem para a conversa, porque é possível continuar mastigando enquanto conversa, pelo fato de que para sinalizar não é necessário utilizar a boca e, portanto, ter partes diferentes do corpo fazendo funções diferentes ao mesmo tempo. Esta situação não seria possível a ouvintes, tendo em vista que o falar e o mastigar se utilizam da mesma parte do corpo, a boca, e que “falar de boca cheia” fere as regras de “boas maneiras” à mesa. Uma preocupação com as normas de etiqueta à mesa é relatada por dois entrevistados, sobre o incômodo com o barulho da mastigação ou do manuseio dos talheres que o surdo possa fazer. Moreira (2010) descreve que a ritualização das refeições e a corporificação de seus elementos, que incluíam o uso da faca e do garfo e como proceder à mesa, foram convertidos em boas maneiras e meios de distinção social, garantindo que não houvesse violência à mesa, dado que comer é algo agressivo por natureza e que os utensílios utilizados poderiam tornar-se armas, desta forma ilustrando o processo civilizatório do homem ocidental. Neste sentido, um dos entrevistados faz uma encenação mostrando alguém cortando um alimento com movimentos bruscos e, em seguida, diz que não deve se fazer dessa forma e em seguida relata: “minha família não me ensinou sobre o problema do barulho ao cortar a comida, aí os ouvintes te olham estranho, também [faço] barulho mastigando de boca aberta, que é feio. Certo? Eu ficava distraído, aí os ouvintes olham e dizem que é falta de educação e também arrotar que é feio... Porque em sociedade, é preciso comer direito, mastigar com a boca fechada, não mastigar rápido e engolir, não pode... precisa mastigar bem. Eu fazia barulho cortando os alimentos.” (Entrevistado 4) Textos normativos sobre boas maneiras começam a aparecer no século XII e foram desenvolvidos de forma desigual, em função de diferentes contextos políticos e sociais da Europa ocidental, para atender ao estilo de vida de diferentes grupos sociais (ROMAGNOLI, 2020). As normas à mesa, descritas pelo entrevistado, têm registros no século XIII com o surgimento dos versos de Bonvesin, milanês que escrevia sobre boas maneiras à mesa, dentre as quais havia a indicação de regras como não se deve falar com a boca cheia, e não se deve perturbar a reunião com ruídos desagradáveis, tais quais relatados nesta entrevista. Essas boas maneiras exprimem duas intenções principais para Bonvesin: de um lado o desprezo pelos gestos e atitudes que ofendem o sentimento estético, e por outro lado, a extraordinária atenção que se deve ter à mesa com seus convidados (ROMAGNOLI, 2020). As mesas retangulares têm origem medieval e renascentista e serviam para definir distâncias e relações, já as mesas redondas dão um caráter mais democrático, demarcando menos as diferenças e hierarquias (MONTANARI, 2008). Em uma das entrevistas é relatado que, para os surdos, a mesa retangular dificulta o diálogo, fato que pode ser aplicado a ouvintes também, e relata uma experiência com mesas dispostas formando um quadrado, em vez de uma longa mesa retangular, concluindo que seria mais adequada para que surdos pudessem conversar enquanto estão à mesa. O mesmo relata ainda sobre a dificuldade da comunicação no serviço oferecido por restaurantes: “fazer pedido no restaurante, eu preciso escrever no celular ou leio no cardápio e aponto o que eu quero; às vezes o garçom não entende, tem que escrever, pede um suco, vem errado, isso acontece muito com surdos, pede a comida e vem errado por falha na comunicação, acontece.” Houve quatro relatos sobre a preferência de estar à mesa com outros surdos ou com ouvintes que sinalizem em Libras, por causa da interação. Porém, diferente da hipótese inicial sobre o sentimento de exclusão aparecer como algo marcante na pergunta sobre a comensalidade, ela ficou em segundo plano nos relatos, que foram mais marcados pelas diferenças entre o comer e as conversas à mesa descritos anteriormente. Entretanto, ainda assim foi afirmado o sentimento de exclusão por alguns entrevistados, sendo que na maioria das vezes esse sentimento está relacionado às relações de comensalidade no âmbito familiar, embora também possa aparecer no ambiente profissional. Santos e Oliveira (2020) afirmam que em algumas famílias as refeições podem ser realizadas em um espaço comum, porém em ritual individualizado, demonstrado pelo comer em silêncio. No caso dos relatos das entrevistas, esse silêncio se dá por famílias que não buscam conhecer a língua de sinais e compreendê-la para comunicar-se com o surdo, nem buscam estabelecer estratégias de comunicação que incluam os surdos nas conversas à mesa. “Quando sento com surdos, é animado, a gente sinaliza, com ouvinte é ruim, é verdade. Eu reclamo muito com meus filhos que eu pergunto e eles esquecem, me dizem: “depois, depois” eu vejo que não adianta reclamar. Antes eu reclamava, vi que não adianta, eu parei. Não adianta, as pessoas estão mais acostumadas com ouvintes, sou só eu surda. Já chorei muito, chorava, chorava...” (Entrevistada 6) “Se eu estiver sentada junto com a minha família toda, eu sou a única surda, já experimentei por muitos anos, nunca acaba. A gente se reúne, se reúne para comemorar, eles falam entre si, mas ninguém sinaliza, eu fico sozinha no celular. Não converso com ninguém, fico sozinha.” (Entrevistada 8) Como vimos, os surdos sinalizantes entrevistados nesta pesquisa descreveram diferentes olhares sobre a comensalidade, quais sejam: a conversa à mesa que modifica a atenção ao comer; o uso das mãos para a comunicação, que pode propiciar a conversa em Libras enquanto se mastiga; a preocupação com as normas de etiqueta, porque podem transgredi-las se não estiverem atentos; a distribuição das pessoas à mesa; a acessibilidade em serviços de alimentação e a preferência em estar com seus pares, em detrimento à pessoas ouvintes que não se comunicam e que os fazem sentir solitários à mesa. Muitos dos materiais que são produzidos no intuito de apoiar as ações de EAN, incluindo-se o Guia Alimentar para a População Brasileira, são organizados a partir de recomendações para a população em geral. Cabe destacar, contudo, que numa perspectiva de acolher as diversidades, há de se considerar que, muitas vezes, as mesmas se apresentam de forma normatizadora, inviabilizando e invisibilizando as pessoas com deficiência. Este debate também é importante em contextos como o da crise sanitária da Covid-19, em que a recomendação do uso de máscaras, por exemplo, aumentou consideravelmente a dificuldade dos surdos em se comunicar, por não conseguirem fazer leitura labial, estratégia utilizada por alguns para compreender pessoas que não utilizam a língua de sinais. A pesquisa não teve financiamento e não há conflitos de interesse a declarar por parte das autoras. Referências: IBGE. Censo Demográfico – 2010: Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9662-censo-demografico-2010.html?edicao=9749&t=destaques>. Acesso em 29 de janeiro de 2020. BRASIL, Lei 10436, de 24 de abril de 2002. 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Título do Evento
V Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Título dos Anais do Evento
Anais do V Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

LIMA, Juliana da Silva; CASEMIRO, Juliana Pereira; NEVES, FABRICIA JUNQUEIRA DAS. COMER EM COMPANHIA: UMA COMUNICAÇÃO RUIDOSA?! PERSPECTIVAS DE SURDOS SINALIZANTES SOBRE SUA COMENSALIDADE.. In: Anais do V Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Anais...Salvador(BA) UFBA, 2022. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/VEnpssan2022/493694-COMER-EM-COMPANHIA--UMA-COMUNICACAO-RUIDOSA-PERSPECTIVAS-DE-SURDOS-SINALIZANTES-SOBRE-SUA-COMENSALIDADE. Acesso em: 27/06/2025

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