CORPOS VIOLENTADOS: O MITO DE CÊNIS E A TRANSMUTAÇÃO DO CORPO FEMININO COMO MEIO DE FUGIR DA VIOLÊNCIA SEXUAL

Publicado em 22/06/2023 - ISSN: 2176-3488

Título do Trabalho
CORPOS VIOLENTADOS: O MITO DE CÊNIS E A TRANSMUTAÇÃO DO CORPO FEMININO COMO MEIO DE FUGIR DA VIOLÊNCIA SEXUAL
Autores
  • Marcelle de Lemos Vilela Quirino
  • Viviane Moraes Caldas
Modalidade
Artigos
Área temática
GT 22 - DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO: QUESTÕES FEMINISTAS E DE GÊNERO NA LITERATURA
Data de Publicação
22/06/2023
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://www.even3.com.br/anais/sepechufcg/530453-corpos-violentados--o-mito-de-cenis-e-a-transmutacao-do-corpo-feminino-como-meio-de-fugir--da-violencia-sexual
ISSN
2176-3488
Palavras-Chave
Ovídio, Metamorfoses, Abuso sexual, Gênero.
Resumo
Por muito tempo a história da humanidade foi contada através dos registros históricos que a sociedade vem produzindo ao longo dos anos. Entretanto, com o advento do movimento feminista, começou-se o questionamento sobre o papel das mulheres na construção social, bem como a herança deixada por elas para os dias atuais. Percebeu-se, com isso, que todos os registros existentes eram feitos em grande parte por homens, tendo em vista que as mulheres por muito tempo não tiveram acesso à educação e à escrita, e pela perspectiva do olhar masculino, o qual estava carregado de valores sociais sustentados pelo patriarcado. Assim, devido a esse viés cultural, a mulher sofreu e vem sofrendo um apagamento histórico, sobre o qual se sustentam comportamentos e valores que por muito tempo vem subjugando a capacidade e o valor da classe feminina no meio social. A violência contra a mulher, por exemplo, muitas vezes foi justificada com discursos sobre a natureza do homem que, sendo o provedor da família e a parte racional do relacionamento, poderia e deveria controlar a natureza da mulher, a qual tinha que se contentar com seu papel de dona de casa, e de mãe; e a parte da família que controlada por humores incertos do útero precisava ser obediente e conformada com sua incapacidade de gerir a família ou tomar decisões. Tais argumentos foram completamente derrubados pelos estudos realizados pelo movimento feminista, os quais provaram que não existe essa incapacidade atribuída à natureza da mulher, bem como que nem sempre fomos regidos pelos valores do patriarcado e, nos primórdios da história humana, os homens não eram os provedores da família, como Lerner (2019) apurou em seus estudos, pois enquanto aos homens cabia a caça de animais, a qual nem sempre era vitoriosa, às mulheres e crianças cabia a colheita de sementes e frutas, bem como o cultivo desses, atividades essas que efetivamente sustentavam a família quando a caça de animais para consumo era infrutífera. Há também alguns registros de sociedades matrilineares, fato que quebra o discurso de que o patriarcado sempre foi vigente e o é globalmente. Assim, as justificativas biológicas para submissão feminina se esfarelaram diante das evidências e, a partir disso, começou-se a pesquisa para mostrar que o patriarcado e suas práticas históricas são os reais motivos para que a violência contra a mulher e o seu silenciamento tenham se sustentado até hoje. Como são praticamente inexistentes os registros das mulheres sobre suas vivências em épocas mais remotas da sociedade, com a leitura de clássicos como as Metamorfoses, de Ovídio, podemos observar/identificar o registro de algumas narrativas mitológicas nas quais é possível encontrar abusos contra a mulher, que à época na qual essas narrativas foram registradas, por exemplo, a violência contra a mulher era uma prática comum e “normalizada”. Como é o caso da narrativa de Ceneu (Ov., Met. XII, 168-209), a qual relata a história de um personagem que antes era uma mulher bela e casta e, por tais atributos, findou por chamar a atenção do deus Netuno que a estuprou. Após a violência sexual, a divindade concedeu um desejo à personagem que lhe pediu para se transmutar em um homem, para que, assim, nunca mais fosse vítima desse tipo de violência. Esse trabalho é fruto das pesquisas PIBIC 2020-2021 e PIBIC 2021-2022, a partir das quais foram gerados dados por meio de um mapeamento de toda a obra Metamorfoses, de Ovídio. Foram encontradas 54 (cinquenta e quatro) narrativas nas quais identificamos abusos contra a mulher e, desses casos, mapeamos 23 (vinte e três) narrativas nas quais é possível identificar um ou mais casos de abuso sexual contra as personagens femininas, como é o caso de Cênis que se tornou Ceneu. Tomamos como base para a classificação dos crimes ocorridos nessas narrativas o Código Penal do Brasil, e queremos ressaltar que não intencionamos, entretanto, com tal análise, fazer qualquer julgamento de valor sobre o caráter ou a conduta do autor, muito menos criminalizar os personagens, mas somente mostrar que, em obras clássicas como na escrita por Ovídio, já é possível identificar práticas machistas resultantes do patriarcado e que essas, semelhante às que vemos hodiernamente, podem ser classificadas para fins de estudo e análise conforme o faz o Codex em menção. Neste trabalho, temos como objetivo analisar, através da leitura da narrativa mitológica de Ceneu (Ov., Met. XII, 168-209), a qual compõe a obra ovidiana Metamorfoses, como a violência contra a mulher presente na literatura clássica representa um traço cultural que vem se perpetuando ao longo do tempo por gerações. Sendo assim, nos indagamos, pois, de onde surgiram tais práticas e do porquê ainda persistirem ao longo de tantos anos. Refletimos, também, sobre a valoração do corpo e do gênero masculino na sociedade, pois como pudemos observar na narrativa em comento o corpo masculino confere imunidade a abusos, força, imortalidade e prestígio ao personagem, ao contrário do que vemos quando Ceneu era ainda Cênis. Para alcançar nosso objetivo buscamos responder as seguintes questões de pesquisa: 1) Por quais motivos ocorre esse tipo de violência? 2) Como podemos relacionar a violência sexual sofrida pela personagem Cênis, nas Metamorfoses, à violência sofrida por mulheres na contemporaneidade? e 3) Qual é a influência da valorização do gênero masculino nas práticas abusivas contra a mulher? Utilizamos como referencial teórico para análise da narrativa Lerner (1986) e Perrot (2017), as quais trabalham a questão histórica da exploração e silenciamento feminino; Saffioti (2015) nos auxilia a pensar sobre a violência de gênero; Beauvoir (2019) lança luz sobre o estudo sobre as mulheres e sobre os fatos e mitos que giram em torno delas; Oyewùmí (2021) nos permite compreender a valorização da sociedade ocidental dos corpos para realizar o julgamento e valoração das pessoas por gêneros e corpos; e Canela (2012) nos possibilita compreender acerca do estupro na Roma Antiga. Esta pesquisa tem como característica ser quali-quantitativa (MOREIRA; CALEFE, 2008), tendo em vista que a partir do mapeamento feito das narrativas mitológicas presentes na obra Metamorfoses, de Ovídio, que apresentam casos de violência sexual contra a mulher, tomando-se como base para um estudo de gênero, podemos realizar uma análise do episódio de Ceneu (Ov., Met. XII, 168-209), o qual contém o estupro da personagem Cênis. Realizamos, concomitantemente, uma análise documental e bibliográfica que nos proporcionaram conhecimentos sobre esses tipos de abuso sofridos por questão de gênero infligidos às mulheres e o porquê do gênero masculino ter mais prestígio e imunidade a esses tipos de abuso. Como resultado deste trabalho, chegamos à conclusão, conforme dispõe Oyewùmí (2021), de que o patriarcado se vale da valoração dos corpos masculinos para estabelecer posições de poder, como se esses corpos fossem biologicamente superiores, e, a partir disso, pudessem estabelecer o domínio e os privilégios da parcela masculina da sociedade sobre os demais. Os corpos femininos são vistos, portanto, como inferiores e isto justificaria sua posição inferior e subalterna às decisões masculinas, como as de abusar sexualmente de uma mulher, por exemplo. Cênis, na narrativa mitológica das Metamorfoses, percebe que seu corpo feminino é a sua fraqueza, pois ele é subjugado e passível de julgamento e abusos masculinos, por isso, pede para que ele seja transformado em um corpo masculino. E a partir dessa perspectiva biológica se cria a ideia de gêneros masculino e feminino, os quais acabam condicionando as pessoas a se comportarem e se vestirem de determinada forma, por exemplo, ou ainda a agirem e ocuparem determinados cargos que são reservados a esses gêneros e não por capacidade das pessoas. Por este motivo Beauvoir (2019) afirma que não se nasce mulher, mas se torna mulher de acordo com as imposições sociais de gênero. Outro fato interessante de se analisar é o de que o corpo feminino era super valorizado enquanto virgem e, portanto, intocado por qualquer homem, como é o caso da personagem em análise que é citada no verso 189, do Livro XII, como a mais bela donzela da Tessália, ou seja, a mais bela virgem da região. A felicidade e prosperidade de um mulher estava atrelada, assim, à manutenção da sua honra até o casamento, pois seu companheiro era o constituinte de um futuro promissor, conforme afirma Saffioti (2015, p. 63) - a perda dessa condição relega a mulher à desgraça social. Lerner (2019) afirma em seus estudos que essa objetificação ou reificação da mulher se iniciou com a mercantilização de seu corpo por tribos que tinham como intuito usá-la como forma de perpetuação da tribo a partir da concepção. Perrot (2019) observa, inclusive, que essa prática de reificação ficou tão arraigada na sociedade que era possível observar na Idade Média os senhores feudais exigindo ter a primeira noite de núpcias das suas servas. Com essas informações, podemos ver, portanto, que a mitologia nos ajuda a perceber comportamentos sociais abusivos contra as mulheres que se perpetuam ao longo da história, mas também nos ajuda a refletir e a pesquisar a história silenciada das mulheres e do porquê o patriarcado ainda encontrar-se enraizado e sendo a justificativa ‘perfeita’ para a violência contra a mulher se prolongar. Assim, estudar esses aspectos da violência contra a mulher através da literatura clássica e, também, de um apanhado histórico, nos traz luz sobre a questão e é extremamente importante para que nossa geração saia da ignorância e tome consciência sobre seu papel social e seu poder de mudança.
Título do Evento
Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão do Centro de Humanidades - UFCG
Cidade do Evento
Campina Grande
Título dos Anais do Evento
Anais da XIII Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão do Centro de Humanidades-UFCG
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

QUIRINO, Marcelle de Lemos Vilela; CALDAS, Viviane Moraes. CORPOS VIOLENTADOS: O MITO DE CÊNIS E A TRANSMUTAÇÃO DO CORPO FEMININO COMO MEIO DE FUGIR DA VIOLÊNCIA SEXUAL.. In: Anais da XIII Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão do Centro de Humanidades-UFCG. Anais...Campina Grande(PB) Universidade Federal de Campina Grande, 2022. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/sepechufcg/530453-CORPOS-VIOLENTADOS--O-MITO-DE-CENIS-E-A-TRANSMUTACAO-DO-CORPO-FEMININO-COMO-MEIO-DE-FUGIR--DA-VIOLENCIA-SEXUAL. Acesso em: 25/06/2025

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