LUGAR E INTERSECCIONALIDADE NA HQ "CORRENTE", DE MARCELO D'SALETE

Publicado em - ISBN: 978-65-272-1352-9

Título do Trabalho
LUGAR E INTERSECCIONALIDADE NA HQ "CORRENTE", DE MARCELO D'SALETE
Autores
  • Victor Manoel da Silva Carvalho Sipol
  • Carlos Roberto Bernardes de Souza Júnior
Modalidade
Resumo Expandido
Área temática
Corpo, gênero e sexualidades
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://www.even3.com.br/anais/ix_neer/901226-lugar-e-interseccionalidade-na-hq-corrente-de-marcelo-dsalete
ISBN
978-65-272-1352-9
Palavras-Chave
Lugar; Cotidiano; Corpos racializados; História em quadrinhos
Resumo
A sociedade brasileira é marcada por desigualdades sociais que se tornam ainda mais prementes quando tratamos dos países que fazem parte da periferia desse sistema. O gênero é uma estratificação social muito importante para entendermos as marcas dessas diferenças, posto que há muito tempo as mulheres vêm lutando por seus direitos visando se desvencilhar dos papéis que as são socialmente impostos. Desse modo, há predominância de lógicas que visam centrar suas preocupações ao horizonte das tarefas ligadas ao cuidado. Ademais, o processo de formação do Brasil é baseado na vida de pessoas que foram escravizadas seus efeitos se reverberam nos dias de hoje como parte do circuito da modernidade-colonialidade. Desse modo, essa mobilização e reivindicação de direitos se mostra ainda mais difícil para as mulheres negras em função da interseccionalidade. Lélia Gonzalez (1984) constrói um relato crítico sobre as diferentes maneiras que as mulheres negras são tratadas em nossa sociedade (racista e misógina), indo da mulata que é endeusada e fetichizada à doméstica do cotidiano. Desse modo, o objetivo do trabalho é compreender o lugar na interseccionalidade da mulher negra brasileira por meio das narrativas gráficas de um conto na forma de história em quadrinhos (HQ), “Corrente”, presente na coletânea “Encruzilhada” escrita e desenhada por Marcelo D’Salete. Essa obra apresenta múltiplas situações cotidianas dos lugares das pessoas negras nas grandes cidades brasileiras e possibilita despertar sentidos sobre as violências que marcam suas vidas. Ela também, contudo, proporciona ir além nessa discussão ao tratar o lugar como um potencial espaço de transformação. No caso de “Corrente”, a narrativa concerne o encontro de duas mulheres negras em seus afazeres diários que são entrecruzados pelas dificuldades da interseccionalidade. Compreendemos que o lugar é mais que um espaço local, delimitado ou fechado em si mesmo. Por uma perspectiva ontológica/fenomenológica, esse conceito ganha uma redefinição, pois, como afirma Serpa (2022), ser e lugar sempre estão ligados, de modo que o segundo não é externo ao primeiro, o se traduz em espaço vívido: a espacialidade do ser-no-mundo (Serpa, 2022). É no lugar que as personagens de “Corrente” experienciam as dinâmicas sociais, culturais e corporais cotidianas de expropriação, preconceito e exclusão. Se, como discorre Buttimer (2015, p.9), “os significados de lugar para aqueles que vivem nele têm mais a ver com a vida e os afazeres cotidianos do que com o pensamento”, não é possível dizer que esta dimensão espacial é igualmente vivida por todos. O mesmo é discutido por Serpa (2022), no qual as experiências vívidas no lugar terão intensidades diferentes a depender dos mais variados contextos e momentos das pessoas, tornando-o o fazer viver e os significados do espaço cotidiano mais complexo e distinto. Em razão da corporeidade, há diferenças das dinâmicas de ser-no-mundo que se particularizam no âmbito de ser negro, uma pessoa racializada em uma sociedade marcada pelo colonialismo. Nesse mesmo horizonte da corporeidade, a experiência no caso da mulher negra brasileira que mora na periferia também segue lógicas diferentes dos demais. Dentre os personagens que são apresentados no conto da HQ “Corrente”, uma delas realiza a tarefa de cuidar do seu marido ou parente próximo, Lindoval, que está acamado e precisa de ajuda para várias atividades, como comer. Nesse recorte, podemos observar um ponto que atinge muito o gênero feminino que é a dupla jornada de trabalho, a personagem além de trabalhar para conseguir sustentar a casa, ela precisa também cuidar de outra pessoa no âmbito do seu lar, de forma que o lugar é transformado também em um contexto de labor e dificuldade. Esse contexto se relaciona com o que Silva (2007) discute em seu artigo a respeito do conceito de gênero, postulando que, os papéis sociais são designados conforme a maneira em que se categorizou os corpos, por conseguinte, “aos sujeitos femininos se atribui o desempenho da maternagem, passividade, docilidade, fragilidade e emoção” (Silva, 2007, p.102), o caso em específico é o de cuidadora. Porém, essa personagem também assume um papel que geralmente é socialmente conferido ao homem, o de provedor da casa que “sustenta o lugar”. Segundo Silva (2007), há uma feminização da pobreza urbana, pois ao assumirem o papel como chefes de família, seja por conta de divórcio, viuvez ou como no caso da HQ corrente, a invalidez do companheiro, faz com que esse contexto de pobreza seja agravado e reverbera na vida cotidiana que define o seu lugar. Em um certo momento da história é possível identificar que a personagem depende do apoio dos vizinhos para conseguir cuidar de Lindoval e também que toda essa condição contribui para um desgaste emocional que se torna parte da definição e significação do lugar como espaço do trabalho de cuidado. Contudo, um outro personagem em “Corrente”, chamado Dinto, que mora no mesmo prédio, aparenta ter uma maior proximidade com ambos personagens. Ele ajuda a cuidar de Lindoval e também parece estar em um relacionamento amoroso, o que pode funcionar como uma espécie de escape da realidade, alterando, mesmo que brevemente, a significação do espaço e de sua vivência. Ainda em “Corrente”, somos apresentados a outra personagem, Edilene, pelo ponto de vista de Dinto que é vizinho dela, fica implícito que houve ou há alguma ligação entre os dois, é válido acrescentar que esse personagem se torna o elo entre as duas personagens da história. Logo de início, torna-se claro que Edilene é uma prostituta, de modo que no primeiro quadro podemos ver ela com um cliente branco em seu quarto e isso irá se repetir no final da história. Essa representação como prostituta reflete a relação entre gênero, trabalho e lugar no contexto das desigualdades desencadeadas por esta circunstância. Ela também expressa a visão do homem branco que transfigura o corpo da mulher negra na mulata, como reflete Gonzalez (1984), o fetichizando. Ao falar abordar a naturalização do racismo, Lélia Gonzalez afirma que, com relação a figura feminina negra é seguramente designado os papéis de “[...] cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta” (1984, p. 226, grifo nosso). Essa dinâmica advém das funções desempenhadas pelas escravas no período colonial, a mucama, na qual não apenas prestava serviços domésticos ou era companhia das sinhás, mas também para seus senhores por meio de abusos sexuais recorrentes. Desse modo se transpõem aos mesmos corpos, a figura fetichizada da mulata e da doméstica, uma lógica de corpos e lugares que se articulam para servir e cuidar, como evidenciado no caso das mulheres negras da HQ “Corrente”. Ao terem seus corpos racializados em um espaço da branquitude, essa violência atinge um nível existencial, posto que como afirma Serpa (2022) a manifestação de espacialidade do ser-no-mundo culmina na revelação de sua corporeidade. A experiência do espaço vívido se dá através do corpo, das relações e interações com os outros. Nesse debate ontológico, Fanon disserta que “enquanto o negro estiver em seu lar, não precisará, exceto por ocasião de lutas internas de menor gravidade, pôr seu ser à prova de outrem” (2024, p. 125), destacando que em uma sociedade colonizada a ontologia se torna irrealizável e “[...] o negro já não precisa ser negro, mas precisa sê-lo diante do branco” (Fanon, 2024, p. 125), na perspectiva branco-ocidental-colonial a mulher negra é desprovida de sentimentos, como amor, e beleza, afetando duramente suas relações no cotidiano – ela é situada em um lugar que se define apenas como cuidado e serviço: as posições ocupadas pelas duas mulheres na HQ. Posto isso, na conclusão de “Corrente”, Dinto precisa entregar a figura da santa para outra moradora e é revelado que se trata de Edilene. Sem que seja expresso em diálogos, os gestos dos corpos representados narrativa gráfica de D’Salete evidenciam que ela é um ser humano, que sente amor, tristeza, felicidade e têm suas crenças, assim como um lugar prenhe de significações, sentidos e imaginações. Em uma expressão artística na qual o espaço continua sendo predominantemente masculino e branco e, portanto, é permeado por vários dos estereótipos relacionados as mulheres negras, essa Hq apresenta uma modificação nas representações interseccionais dos negros e das negras. Ao retratar o cotidiano dessas personagens, D’Salete evidência o lugar marcado pelas complexidades da existência do ser-no-mundo. Dessa forma, mesmo a lugaridade da mulher negra sendo marcada pela violência, seja ela física, emocional ou estrutural, elas conseguem transformar seus cotidianos e lugares de sofrimento em esperança ao resistirem contra essas injustiças. Por meio da representação de D’Salete, é evidente que o lugar também pode ser onde elas (re)descobrem suas autoestimas, felicidades e paixões, redefinindo ser negra(o) em nossa sociedade, de forma a, como Emicida musicou, “[...] devolver o orgulho pro gueto, e dar outro sentido para frase tinha que ser preto”. Referências AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Coordenação Djamila Ribeiro. Feminismos Plurais. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2019. 143p. BUTTIMER, Anne. Lar, horizontes de alcance e o sentido de lugar. Geograficidade, Vol. 5, n. 1, p.4-19, 2015. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. 1ª ed. 6ª reimpr. São Paulo: Ubu Editora, 2024. GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências sociais hoje, p. 223 – 244, 1984. HASENBALG, Carlos. Raça, classe e mobilidade. In: GONZALEZ, Lélia. Lugar de negro. 1ª ed. 2ª reimpr. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. NETO, Marcolino Gomes de Oliveira. Entre o grotesco e o risível: o lugar da mulher negra na história em quadrinhos no Brasil. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, Brasília, jan./.abr, 2015, p. 65-85. SERPA, Angelo. Problematizando lugar como conceito e categoria da Geografia Humanista. GEOUSP Espaço e Tempo (Online), São Paulo, Brasil, v. 26, n. 2, p. 77–89, 2022. SILVA, Joseli Maria. AMOR, PAIXÃO E HONRA COMO ELEMENTOS DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO COTIDIANO FEMININO. Espaço e Cultura, [S. l.], n. 22, p. 97–109, 2012. SILVA, Joseli Maria. Gênero e sexualidade na análise do espaço urbano. Geosul, Florianópolis, n. 44, v. 22, p. 117-134. Jul./dez. 2007.
Título do Evento
IX NEER
Cidade do Evento
Curitiba
Título dos Anais do Evento
Anais do Colóquio Nacional do NEER: Movimentos e devires, espaço e representações
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

SIPOL, Victor Manoel da Silva Carvalho; JÚNIOR, Carlos Roberto Bernardes de Souza. LUGAR E INTERSECCIONALIDADE NA HQ "CORRENTE", DE MARCELO D'SALETE.. In: . Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/ix_neer/901226-LUGAR-E-INTERSECCIONALIDADE-NA-HQ-CORRENTE-DE-MARCELO-DSALETE. Acesso em: 05/07/2025

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