Um
dia de Poesia – 2º Colóquio - 29 de junho de 2022
A poesia está na base de toda manifestação humana da cultura. Para lembrarmos Segismundo Spina no seu famoso Na madrugada das formas poéticas, a poesia, desde seu estado primitivo, apresentada de forma coletiva e ligada ainda às manifestações mágicas e musicais, é parte do elaborado e complexo surgimento de qualquer cultura ou povo, sendo elemento humano dos mais significativos e multifacetados.
Tal importância faz com que a poesia seja, em muitos momentos,
o marco histórico inicial de um povo. Nessa aurora das civilizações, é a poesia
ao mesmo tempo canto e dança, encantamento mágico e amuleto. A poesia, muito
mais plural do que as formas as quais nos habituamos a encontrá-la na
cotidianidade, compõe no berço das civilizações, sobretudo naquelas que antecedem
à escrita, papel fundamental e fundacional.
Além de inaugural, porque inaugura noções de tempo e de
periodicidade, de sagrado e de comunidade, de moral e de práticas de bem viver,
é função da poesia também resguardar do esquecimento os feitos coletivos,
trazendo sempre ao lugar da confrontação a verdade. Como os aedos gregos que,
inspirados, atravessavam o rio Léthe e traziam do mundo dos mortos a Verdade, aletheia,
que deveria preservar do esquecimento os feitos heroicos do povo. Resguardar do
esquecimento para resistir a essa força que sempre está do outro lado da tensão
da poesia: a nossa capacidade de esquecer. Cabe à poesia, desde seus
primórdios, então, o lugar da resistência.
Ao mesmo tempo histórica e a-histórica, podendo então
ultrapassar os limites de seu tempo, perpetuando-se de forma transocial, a
poesia resiste e insiste em manter na memória coletiva aquilo que forçosamente
empurram-nos a esquecer. Porque as sociedades existem nesse delicado equilíbrio
entre o que lembrar, o que esquecer e a quem interessa cada uma dessas opções,
o conflito de narrativas que perdurarão, o que deverá ser levado a gerações
futuras. Ainda dotada dos poderes de des-velar a verdade, essa potência grega
da qual a poesia não se afasta, ela resiste às fake news, ao mundo de
mentiras a que somos constantemente jogados porque, mesmo sendo o fingimento do
poeta, como nos diz Fernando Pessoa, ainda é uma das mais verdadeiras formas de
pensamento humano.
A poesia ainda desempenha esse papel porque é capaz, como
nos lembra o filósofo alemão Martin Heidegger em ensaio sobre a poesia de
Hölderlin, de nos fazer habitar o mundo, possibilitando então que toda a
experiência habitual, de habitar, seja sempre uma experiência poética. A poesia
nos faz habitar o mundo no tempo e no espaço porque tem em si a máxima
manifestação do poder próprio da linguagem para o acolhimento e o recolhimento. Como comenta Heidegger no
ensaio sobre o fragmento 50, de Heráclito: sabendo-se que a linguagem tem poder
de acolhimento e de resguardar, ao poético nos cabe esse estabelecer relações
próprias com o mundo, no qual estamos sempre em constante embate, trazendo a
nós a verdade de um habitar potente e produtor.
É nessa perspectiva que o 2º Colóquio se organiza.
Em tempos duros em que a verdade é sempre questionada, num momento em que tudo
pode ser desdito e que a crise da verdade se instaura novamente, a poesia
reclama seu histórico lugar da Verdade. Nela, encontramos o des-velar dos
dramas humanos, suas lutas e aflições, seus enigmas que cabem profundo
reanalisar. É em tempos cada vez mais duros contra as artes que a poesia
resiste no que tem de mais humano: mostrar a transitoriedade de tudo, a
renovação possível e novas e potentes formas de habitar de novo o mundo, o
tempo e o espaço, para acolhermo-nos na linguagem em tempo de profundo
desamparo.
Um dia de Poesia – 2º Colóquio
se propõe a ler, refletir e analisar as múltiplas faces da “Poesia”. Com
objetivo de estabelecer um diálogo plural sobre o processo criativo, editorial
e tecnológico que envolve autor, obras e público leitor, integram a programação
palestras de pesquisadores e, também uma homenagem aos poetas mineiros Evaldo
Balbino e Fernando Fábio Fiorese Furtado.
O evento será realizado inteiramente na modalidade remota e está com
inscrições abertas para ouvintes.
Por isso, nesta edição, o evento busca manter o diálogo com
os poetas vivos, de nosso tempo, que estão no meio desse embate e dessa
resistência. Fernando Fiorese e Evaldo Balbino, homenageados desse ano, estarão
conosco falando de suas produções artísticas e desse lugar do poeta no nosso
tempo. Na mesma sequência, trazemos discussões críticas que abordam a poesia e
o espaço digital; poetas deste século e dos passados, como Cecília Meireles e
Charles Baudelaire; poetas regionais do Jequitinhonha e a Poesia na boca do
Povo, bem como leituras de poetas como
Hesíodo. Tudo para lembrar esse lugar de embate em que vive e vige o poético:
força potente e produtora que, como nos disse Caetano Veloso, “é capaz de botar
mundos no mundo”.