Homenagem a José Antônio Souza de Deus

É com enorme emoção que me dirijo a vocês, participantes do IX Colóquio Nacional do Núcleo de Estudos de Espaço e Representações – NEER, conduzido nesta edição pelo tema “Movimentos e Devires- espaços e representações”.
Recebi o convite da coordenação do evento através de Salete Kozel para prestar homenagem ao professor pesquisador Dr. José Antônio Souza de Deus, o Jose Antônio o Zé de Deus, ou simplesmente Zé, amigo e companheiro de vivências acadêmicas de tantos e de jornadas da vida de muitos, que nos deixou em 24 de abril deste ano de 2024. Entrei em contato com pessoas de nosso convívio e de eventos da Geografia Cultural que contribuíram com relatos inseridos nesse texto.
Sua entrada no NEER foi comemorada e exposta com muita alegria. Ele se sentiu ainda mais inserido ao grupo, reconhecido e valorizado pela produção na geografia cultural: “Olha eu aí, agora sou membro do NEER!” apontou para mim seu nome na programação e fotos com participantes. Isso ocorreu em 2018, no Colóquio de Diamantina, mas desde Porto Velho em 2009, o Zé já era figurinha carimbada nos encontros do NEER, bem como nos Grupos de Trabalho – GT’s, de Geografia Cultural do ENANPEGE – Encontro Nacional da Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia.
José Antônio se formou em geologia em 1977 e vai atuar como tal na Petrobras, em Aracaju. Todavia, se encontrou profissionalmente em 1982, ao ingressar como professor por concurso, no Instituto de Geociências da UFMG, casa que o formou geólogo e, em 2008, o credenciou na Pós-Graduação. Iniciou uma trajetória acadêmica de amor explícito à Geografia, com formação na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, pelas orientações de Carlos Minc no Mestrado e Bertha Becker no Doutorado. Reside aí, pela ambiência com os orientadores, sua dedicação e atenção para com os povos originários e as comunidades tradicionais.
Ele Ministrou um vasto leque de disciplinas que nos auxilia entender o ecletismo acadêmico e a complementariedade entre geologia e geografia, conciliando abordagens e análise sobe o turismo, indigenismo e comunidades tradicionais. Com efeito, ao adentrarmos em sua vasta produção (desde artigos a orientações) encontramos uma nuvem de palavras comandadas por conceitos estruturantes de uma Geografia voltada para grupos minoritários e/ou comunidades invisibilizadas, secundarizadas social e economicamente. São elas, dentre outras: paisagem, lugar, território, patrimônio, etnogeografia, etnoambientalismo, gemologia, fronteira, identidade, socioespacialidade e segregação espacial.
A professora Lussandra Martins Gianasi enviou, em nome do Departamento de Geografia do IGC/UFMG, a seguinte mensagem:
Ele foi e é nos nossos corações o geólogo mais geógrafo do IGC. Enobreceu o trabalho da Geografia Cultural e Indígena, antes mesmo do tema ser de vanguarda, tanto na graduação, quanto na pós em Geografia. Apresentou à Geologia uma sensibilidade incomensurável no trato dos recursos naturais sobremaneira pelo respeito aos humanos que ali, nesses territórios, coexistem (Departamento de Geografia – IGC/UFMG, em 28.10.2024).
José Antônio é assim, amplamente conhecido no âmbito da Geografia Cultural, mas sua vida pessoal foi singularmente reclusa, peculiar e invulgar. Por esse motivo, repito, ao receber o convite de Salete, imediatamente, entrei em contato com um círculo seleto de pessoas presentes em seus comentários, de forma a registrar um pouco mais sobre o sentido de seu ser-no-mundo.
Moacyr de Lins Wanderley e Beatriz do Vale Dourado, contemporâneos de José Antônio no curso de Geologia, época em que os conheci enquanto cursava geografia. Eles registram de forma carinhosa as experiências de vida com Zé de Deus.
Conheci Zé Antônio no curso de geologia da UFMG. Fomos colegas na primeira turma do curso. Zé Antônio desde o começo revelava sua grande paixão pelos mapas e pelo conhecimento da Geografia mundial. Debruçava-se sobre os mapas e sabia tudo sobre os países, suas capitais, governos e regimes políticos. Além disso conhecia tudo sobre as populações, composição étnica, história e evolução dos regimes políticos. Demonstrava maior interesse nessas questões do que na ciência geológica. Depois de formados mudamos para Aracaju onde Zé trabalharia na Petrobras e eu fui para a Petromisa. De volta para Minas Gerais, Zé fez concurso para professor de geologia para o curso de Geografia. Cada vez mais seu interesse se voltava para as questões humanas, interesse este que manteve até o final da sua trajetória acadêmica. Acredito que a dedicação do Zé à geografia tenha lhe proporcionado satisfação pessoal e realização profissional. (Moacyr de Lins Wanderley, em 27.10.2024)
... E Bia complementa,
Zé Antônio, colega e amigo querido de mais de 50 anos, desde o tempo de universidade, partiu para outra dimensão, mas deixou boas recordações, momentos de muita amizade e amor. Era aquele amigo querido e generoso que, apesar de compartilharmos muitas coisas em comum, sabia respeitar as divergências quando elas surgiam.
Foi vanguarda em muitos aspectos da vida, católico fervoroso, mas nunca exerceu qualquer tipo de patrulha sobre as pessoas com as quais convivia.
Nossa amizade começou quase que instantaneamente quando nos conhecemos na UFMG [...]. Foi um período intenso, de muita participação no movimento estudantil da época, no qual o Zé se jogou de corpo e alma. Logo depois de formados nos encontramos em Aracaju, eu casada com Moacyr. [...] Posso dizer que o Zé se encontrou profissionalmente e interiormente no ICG. O trabalho que ele desenvolvia na Geografia e o relacionamento com alunos e colegas professores preencheram a vida dele de forma definitiva.
O Zé demorou a fazer uso do celular, sempre se comunicando através de cartões e longas cartas, mas a partir do momento que adotou o celular seu uso foi intenso. Eram mensagens diárias sobre os mais diversos assuntos, sempre críticas, bem-humoradas, calorosas, dependendo da situação. A penúltima mensagem que recebi dele foi no dia 6 de abril de 2024, na categoria das bem-humoradas. Depois houve um hiato [...] No dia 21 de abril ele me respondeu de forma lacônica: “Estou hospitalizado”. A partir daí meu contato foi com Liliane, geógrafa e sobrinha querida dele. Essas lembranças estarão sempre em nossas mentes! (Beatriz do Vale Dourado, em 26.10.2024)
Recebi o relato de Ludmila de Miranda Rodrigues Silva com alegria, pois traduz sua postura como professor e orientador,
Tive o prazer e a honra de ser orientada por José Antônio de Deus, durante toda a minha formação na UFMG, desde a graduação em 2008 até o doutorado, em 2019, quando ele me encaminhou e orientou nos projetos, abriu portas e me ensinou sobre a diversidade, sobre o respeito que temos de ter com os povos indígenas e quilombolas. José Antônio era um ser humano muito ligado à essas questões sociais e buscava abrir os olhos das pessoas para verem essas desigualdades, para sim, realmente, sentir a importância de parar, refletir e mudar nossas ações de forma a dar visibilidade a esses povos. [...] Eu costumo dizer que ele era o meu pai acadêmico, aquele que me acompanhou, puxou a minha orelha quando precisava, mas estava sempre do meu lado. E eu sinto que ele sempre estará. Pessoa como ele é eterna nas memórias. Abraços a todos que estão nesse momento de homenagem ao Zé. Zé era uma pessoa incrível que merece todo esse carinho. Que receba tudo isso onde estiver (Ludmila de Miranda Rodrigues Silva, em 25.10.2024).
O depoimento da Professora Doutora Aparecida Tubaldini nos fornece, pelo olhar e sentimento da colega de Departamento, a dimensão do percurso acadêmico de Zé Antônio, pela parceria em atividades de ensino, pesquisa e extensão. Seu depoimento é longo e, como afirma, merecedor de um artigo. Em trechos marcantes, ela nos diz:
Colocar breves palavras sobre o colega e amigo Dr. José Antônio Souza de Deus é tarefa complexa, pois foram mais de 20 anos de parceria em pesquisar, escrever, ministrar disciplinas em conjunto da pós-graduação relacionando o conteúdo teórico da Geo. Cultural, da Géo Agrária, e do Campesinato merece no mínimo, um artigo comentando os trabalhos realizados pelo professor Jose de Deus. Vou tratar aqui do período de 2005/08 a 2015/2017 em que trabalhamos em conjunto e criamos projetos de Pesquisa e Extensão [...] Não preciso comentar a capacidade teórica de José Antônio de Deus, com o qual muito aprendi, e nossas trocas de aprendizado seja no campo, em leituras teóricas e os momentos que discutimos e entendíamos o teórico do território, dos etnoterritorios, da etnosustentabilidade, os saberes, as trocas Inter geracionais entre povos tradicionais, as festas e danças e o papel das mulheres no ambiente das comunidades quilombolas [...]. Seu conhecimento do Vale do Jequitinhonha por meio de mapeamento etnográficos e trabalhos de campo da geologia e minha orientação de um mestrado nos territórios quilombolas de Minas Novas, deixou-nos seguros para definir o recorte territorial de comunidades quilombolas em Minas Novas e Chapada do Norte no primeiro projeto de Pesquisa. [...] Pesquisadores em Geografia, Educação, Cartografia e Geoprocessamento ampliaram o grupo de pesquisa e o projeto tornou-se Mapeamento de Comunidades Quilombolas. Ampliou-se o recorte territorial para Capelinha – Vale do Jequitinhonha com a mesma dinâmica, pesquisa e ação.
O segundo grande Projeto desenvolvido em parceria com José de Deus foi o Projeto Procrad /CAPES - da Pós-Graduação em Geografia do IGC/UFMG, com a Pós-Graduação em Geografia da UFF, com Coordenação Geral de Jacob Bisztok. O grupo de pesquisa do IGC foi composto por mim, Maria Aparecida S. Tubaldini, José Antonio de Deus, Bernardo Gontijo e Lussandra Gianasi. [...] Foram 4 anos de Projeto de Pesquisa, abrangendo a agricultura familiar e campesinato no recorte territorial central de Rondônia. O Dr. Jose Antônio de Deus desenvolveu entrevistas com povos indígenas Surui-Painter, Gavião, e outros povos localizados no entorno da Reserva Sete de Setembro. Foram realizadas 4 viagens de 10 dias em que fazíamos entrevistas com agricultores familiares agroecológicos, em Ji-Paraná, Ouro Preto do Oeste, Cacoal e Jaru. Este, terminamos em maio de 2009. Muitos campos mais vieram. O melhor para mim ocorreu em 2013. (Aparecida dos Santos Tubaldini, profa. Dra. Titular do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFMG).
A Professora Doutora Sonia Menezes da Universidade Federal de Sergipe coordenou um projeto interinstitucional com Maria Geralda de Almeida pela Universidade Federal de Goiás e José Antônio de Deus, pela Universidade Federal de Minas Gerais, que se estendeu de 2016 até 2020. Ela reforça sua postura acadêmica:
Considero que esse é um momento muito especial, um espaço de homenagem a um grande mestre que embora não fosse geógrafo de formação, dedicou sua vida a Geografia, a formação de geógrafos com dedicação e paixão especialmente pela Geografia Cultural, portanto, as suas contribuições com as orientações de teses e dissertações foram importantes para a difusão da pesquisa nessa área do conhecimento geográfico.
Me sinto grata por ter tido a oportunidade de conviver com esse mestre em diferentes momentos: na participação em bancas de mestrado e doutorado, na organização de GT’s nos últimos três eventos do ENANPEGE e na execução de um projeto de mobilidade acadêmica, o PROMOB. A sua simplicidade, o seu desprendimento, a dedicação ao trabalho e presteza marcou a sua trajetória. Assim, finalizo com o sentimento de gratidão a Deus por ter permitido a convivência com o prof. José Antônio Souza de Deus, PRESENTE! (Sonia Mendonça de Souza Meneses, Programa de Pós-Graduação em Geografia/UFS).
E eu, registro aqui sua última mensagem para mim, no dia 4 de abril de 2024, sobre denúncia de que 94% dos indígenas ianomâmis estão contaminados por mercúrio e, respondo: Tragédia inominável! Como Bia, estranhei a interrupção de mensagens e o sinal veio com Liliane atendendo ao telefone.
Eu fico com o Zé ou Seven Lakes. Assim eu o chamava pelo fato de termos nascido na cidade de Sete Lagoas/MG – ele, em 12.03.1955. Em 1979, quando me mudei para Aracaju, foi anfitrião e acolhedor e, a partir dessa data nos frequentávamos socialmente e, mais adiante, em parcerias acadêmicas, sobretudo nos Grupos de Trabalho do ENANPEGE e NEER.
Fico com a franjinha na testa emoldurando o riso de dentes pequenos e charmosos. Fico com a pessoa reservada e marcante tanto quanto os broches que cuidadosamente trocava a cada blusa.
Fico com o Zé defensor das causas indígenas, presente, zeloso e pontual nos afazeres acadêmicos. Fico com o Zé radical em seus comentários curtos e precisos, seguidos de risos, sacudindo os ombros e, respeitosamente, nos dizendo: “é o que penso, é isso!”. E como seu pensamento era amplo! Palpitava e refletia sobre diversos temas e fenômenos com franqueza e abundância argumentativa. Daí sua generosidade em expor as dimensões de seu ser-no-mundo.
Como foi dito nos depoimentos, receba tudo isso onde estiver.
Ficamos, pois, com “DEUS RESPONDE”, tal como em seus e-mails, aguardando o próximo comentário.
Maria Augusta Mundim Vargas
Curitiba, IX Colóquio do NEER, 04.11.2024
Comissão organizadora
Adriano Duarte Dalmolin
André Gustavo Nunes
Alessandro Filla Rosaneli
Beatriz Carvalho Tavares
Cadu Cinelli
Eduarda Cividini Pagnussat
Ewerton Lemos Gomes
Fábio de Castilhos Lima
Felipe Rossi Ferreira
Hugo Marandola
Janaina Gaby Trevisan
Luiz Raphael Teixeira da Silva
Marcos Torres
Marcos Souza de Oliveira
Pedro Israel Mota Pinto
Roberto Filizola
Rodrigo Guissoni
Salete Kozel
Sylvio Fausto Gil Filho
Thamires Reis de Paula
Thays Ukan Pereira
Vander Valduga
Wagner Gabardo
Comissão científica
Adnilson de Almeida Silva - UNIR
Alessandro Dozena - UFRN
Alessandro Filla Rosaneli - UFPR
Alexandre Magno Alves Diniz - PUC-Minas
Álvaro Luiz Heidrich - UFRGS
Angelo Serpa - UFBA
Benhur Pinós da Costa - UFSM
Cláudia Luísa Zeferino Pires - UFRGS
Clevisson Junior Pereira - UFPR
Janio Roque Barros de Castro - UNEB
Jean Carlos Rodrigues - UFTO
Jörn Seemann – Ball State Univ.
José Antônio Souza de Deus - UFMG
Joseli Maria Silva - UEPG
Josué da Costa Silva - UNIR
Lorena Francisco de Souza - UFG
Luciléa Ferreira Lopes Gonçalves - UEMASUL
Luiz Raphael Teixeira da Silva - SEDUC-CE
Maisa França Teixeira - FACEB
Marcia Alves Soares da Silva - UFMT
Marcos Torres - UFPR
Maria Augusta Mundim Vargas - UFS
Maria das Graças Silva Nascimento Silva - UNIR
Maria Idelma Vieira D'abadia - UEG
Nelson Rego - UFRGS
Nola Patricia Gamalho - UNIPAMPA
Oswaldo Bueno Amorim Filho - UFMG
Roberto Filizola - UFPR
Salete Kozel - UFPR
Sônia Regina Romancini - UFMT
Sylvio Fausto Gil Filho - UFPR
Vander Valduga - UFPR
Virgínia de Lima Palhares UFPR