A história da psicologia se confunde, em alguma medida, com a história da avaliação psicológica, pois, desde o surgimento da ciência psicológica moderna, houve uma preocupação com a mensuração dos fenômenos psíquicos. A necessidade de mensuração se deu, sobretudo, porque, à época de seu advento, a psicologia não escapou às exigências positivistas de cientificidade segundo as quais só é ciência aquilo que é matematizável. A exigência de matematização é o corte entre a ciência antiga e a moderna, na visão de Alexandre Koyré, filósofo e historiador da ciência. Esta é, pois, a essência da chamada revolução científica moderna. Nesse sentido, a escolha por contar a história da psicologia a partir da fundação do Laboratório de Psicologia Experimental, em 1879, por Wilhelm Wundt em Leipzig não é um fato fortuito, mas é parte da tentativa de construir uma imagem da psicologia alinhada às exigências de cientificidade do período. Imbuídos desta imagem, psicólogos podem se sentar orgulhosos à mesa, em pé de igualdade, com as ciências positivas, tal como a física e a biologia.
Indubitavelmente, a mensuração do fenômeno psicológico contribuiu para certo aprofundamento científico sobre diferentes aspectos da mente ou do comportamento, entendidos como o objeto da psicologia. A despeito disso, grande parte da produção científica, sobretudo, dos finais do século XIX e início do século XX, ao optar pela mensuração, acabou por gerar um isolamento da mente e do comportamento de seu contexto social, político e econômico. O isolamento do saber psicológico de seu contexto de produção teve por consequência a criação da ilusão de uma psicologia universal, neutra e objetiva, atrás da qual se escondiam seus vieses de classe, raça e gênero, por exemplo. Como coloca Robert V. Guthrie, em “Even the rat was white” [Até o rato era branco], título, no mínimo, provocativo, inúmeros trabalhos em psicologia participaram, de forma decisiva, para instituir visões supremacistas, levando psicólogos a defender que não valia a pena dar educação intelectual ao negros, pois estes tinham capacidade mental apenas para atividades mecânicas que supostamente exigem pouco esforço cognitivo, como argumentou George Oscar Ferguson em seu livro “The psychology of the negro: an experimental study” [A psicologia do negro: um estudo experimental] de 1916.
Na atualidade, tem sido cada vez mais corrente o uso da expressão "psicologia baseada em evidências", reatualizando a tendência histórica do positivismo na psicologia. Muitas das vezes, a expressão é usada como uma "reação" à psicologia crítica cuja gramática em anos mais recentes não para de se expandir para incluir os debates sobre raça, etnia, classe, gênero, colonialismo, eurocentrismo, entre tantos outros. Paradoxalmente, a discussão entre aqueles que reivindicam para si um fazer baseado em evidências passa ao largo do que é evidência, sobretudo, porque o conceito de evidência não é científico, e sim filosófico-epistemológico e histórico-social. Não há psicologia sem filosofia (epistemologia) e todo o conjunto de ciências humanas e sociais, com as quais a filosofia dialoga na busca por dizer o que é uma evidência. A redução do debate sobre evidência a se os resultados da pesquisa foram ou não publicados em uma revista científica de alto impacto, localizada "coincidentemente" em países do Norte Global, demonstra que a ciência ganha seus próprios contornos quando empresas capitalistas passam a controlar, direta ou indiretamente, a produção, o consumo e a circulação do conhecimento científico, instituindo seus próprios critérios do que é uma evidência como universais. Os modos de produção de evidência variam segundo as condições históricas pelas quais o saber científico se torna possível, e se revelam marcados por inúmeros vieses que, na maioria das vezes, só são perceptíveis em análise a posteriori. Com isso, não se está negando, obviamente, a possibilidade da psicologia como ciência, mas defendendo a necessidade de uma indagação sobre as heranças históricas do passado que permanecem inquestionadas com vistas a um novo futuro para a avaliação psicológica, um futuro comprometido com a transformação das desigualdades, iniquidades e exclusões que marcam o mundo em que vivemos.
É, pois, tendo isso no horizonte que propomos este seminário científico-acadêmico de reflexão na área de avaliação psicológica em interface com os estudos latino-americanos decoloniais e antirracistas, com foco na discussão sobre a descolonização da avaliação psicológica, na psicometria como aliada da descolonização da avaliação psicológica e nos desafios da construção de escalas para a mensuração do racismo e seus efeitos, entre outros temas correlatos. Nosso interesse é reunir pesquisadores/as, profissionais e/ou estudantes interessados/as da área de psicologia e da avaliação psicológica e das inúmeras outras áreas da saúde mental, das humanidades e das ciências sociais com vistas à produção de um conhecimento interdisciplinar comprometido com os desafio da transformação da realidade de vida dos “condenados da terra”, como escreveu Frantz Fanon, pois não basta apenas intervir na pessoa que sofre, mas transformar, de modo efetivo, as estruturas sociais e econômicas que produzem o sofrimento.
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