Em
2021, a quinta edição do Encontro de Relações Raciais e Sociedade (ERAS) propõe
um amplo debate acerca das vivências interseccionais de raça, gênero e classe
no Brasil pandêmico, com destaque para os desafios enfrentados pelas populações
negra e indígena. Para tanto, o tema do evento ecoa as vozes dos escritores
Conceição Evaristo e Ailton Krenak.
Conceição
Evaristo, durante um ato político em defesa da democracia realizado na Lapa, no
Rio de Janeiro, em outubro de 2018, declarou: “Eles combinaram de nos matar. E
nós combinamos de não morrer”[1].
Essas palavras são, também, mobilizadas pelo menino Dorvi, que clama por “uma
maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel” no conto “A
gente combinamos de não morrer”[2].
Nas tramas da escrevivência, a autora evoca as histórias daqueles(as) que
vieram antes dela e que se fizeram alicerces da luta diária pela sobrevivência
em uma sociedade estruturalmente racista e desigual.
Mostra-se
urgente, de igual modo, agregar a essa reflexão o questionamento de Ailton Krenak
acerca do que entendemos por humanidade. Em seu livro “Ideias para adiar o fim
do mundo”[3], o
líder indígena faz as seguintes perguntas: “somos mesmo uma humanidade? Como
justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados
do mínimo exercício de ser?” Segundo o autor, a ideia de uma humanidade
esclarecida e civilizada vem expulsando o povo do campo e da floresta,
arrancando-os de seus lugares de origem e levando-os para as periferias
brasileiras, como mão de obra para a maquinaria neoliberal dos centros urbanos.
Complementar a essa reflexão, a Carta Final da Assembleia Nacional Da
Resistência Indígena[4]
nos convida ao pensamento de que, neste período pandêmico, ouve-se falar de um
despertar para uma solidariedade coletiva. Contudo, não haverá completude se a
solidariedade e a luta por um planeta melhor não considerarem os povos
indígenas, os quais estão no cerne dos princípios humanos.
A
necessidade desse pacto coletivo se torna ainda mais evidente no cenário atual,
em que a ideia de um “vírus democrático” caiu por terra. As vítimas da pandemia
têm gênero, raça e classe: os efeitos econômicos da pandemia pesam sobre uma
parcela bem delimitada da sociedade. Os abusos, as perdas de direito, a
“boiada” que se passa enquanto todos falam do coronavírus afetam grupos
específicos. Isso tudo registrado por meio de índices alarmantes de
contaminação, hospitalização e óbito de pretos(as), pardos(as) e indígenas, por
exemplo, nos Boletins Epidemiológicos da COVID-19[5],
divulgados semanalmente pelo Ministério da Saúde.
De
maneira complementar, o Relatório Mulheres Negras e COVID-19, da ONU Mulheres
Brasil[6],
aponta que a pandemia agravou as disparidades de gênero e raça. Embora a taxa de
mortalidade por COVID-19 seja maior entre os homens, o ônus socioeconômico
recai sobre as mulheres, sobretudo em razão do trabalho doméstico não
remunerado. Ainda, as mulheres negras habitantes de regiões periféricas são
mais dependentes dos serviços públicos de saúde e constituem a maior parte da
força de trabalho empobrecida do país, quando não se encontram entre as
estatísticas crescentes de desemprego, o que potencializa sua situação de
vulnerabilidade.
No que
se refere ao panorama indígena, dados do Instituto Socioambiental Brasil[7] demonstram
que, desde a identificação do vírus até agosto de 2020, cerca de 24.942 pessoas
indígenas já haviam sido contaminadas no país, o que representa um terço das
populações originárias que vivem sob um crítico contexto de crise sanitária no
Brasil. Introduzido nas comunidades indígenas por indivíduos externos a elas, o
novo coronavírus repetiu de modo similar o contexto colonial, sendo percebida,
ali, uma nova oportunidade para o ideal eugênico de nação prevalecer.
Motivados
pela premência do debate, da difusão de informações e de conhecimentos sobre a
temática, é que nesta edição do Encontro de Relações Raciais e Sociedade nos
dedicamos a pensar as interseccionalidades de raça, gênero e classe e a
combater a necropolítica em curso no Brasil de 2021. O V ERAS será 100% online
e a programação contará com uma nova roupagem no meio virtual, incluindo mesas
redondas, rodas de conversa, apresentações culturais, comunicações orais,
minicurso, oficina e a tradicional feira afroempreendedora.
Na
certeza da relevância institucional e social de encontros como este, desejamos
a todos um ótimo evento!
[1] SILVA, T. C. As viagens de um Gulever:
o ensino de literatura como (re)existência na contemporaneidade. Terceira Margem, Rio de Janeiro, v. 24,
n. 44, set./dez. 2020.
[2] EVARISTO, C. A gente combinamos de
não morrer. In: EVARISTO, C. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas:
Fundação Biblioteca Nacional, 2018. p. 99-109.
[4] ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO
BRASIL. Carta final da Assembleia Nacional da Resistência Indígena. Brasil:
APIB, 2020. Disponível em:
https://apib.info/2020/05/10/carta-final-da-assembleia-de-resistência-indigena/.
Acesso em: 27 ago. 2021.
[5] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria
de Vigilância em Saúde. Boletins
Epidemiológicos. Brasília: Ministério da Saúde, 2021. Disponível em:
https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/boletins-epidemiologicos. Acesso em:
31 ago. 2021.
[6] ONU Mulheres Brasil. Mulheres negras e COVID-19. Brasília:
ONU Mulheres, 2020. Disponível em:
https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/12/COVID19_2020_informe2.pdf.
Acesso em: 31 maio 2021.
[7] MODESTO, J. G.; NEVES, I. B. Povos
indígenas em contexto de crise sanitária: reflexões sobre estratégias de
enfrentamento à COVID-19. Vukápanavo,
Mato Grosso do Sul, n. 3, p. 217-242, out./nov. 2020.