A caça às bruxas, entre os séculos XVI e XVII, não foi apenas um surto de superstição ou fanatismo religioso. Foi um projeto político e econômico que ajudou a pavimentar o caminho para o capitalismo. Enquanto milhares de mulheres — curandeiras, parteiras, camponesas sem terra — eram torturadas e queimadas, uma nova ordem se consolidava: a expropriação de terras comunais, a disciplinarização dos corpos e a transformação da vida em mercadoria.
A perseguição às "bruxas" serviu para destruir formas de resistência pré-capitalistas. Mulheres que dominavam saberes sobre plantas medicinais, controle da natalidade ou organização comunitária eram uma ameaça à lógica emergente de acumulação. Sua eliminação permitiu o controle estatal sobre a reprodução social e a naturalização da exploração — do trabalho não remunerado das mulheres à escravidão colonial. A caça às bruxas foi uma "guerra contra as mulheres" que inaugurou a divisão sexual do trabalho e a subjugação de corpos ao mercado.
Hoje, a mesma lógica se reinventa. As "bruxas" modernas são aquela(e)s que desafiam a ordem neoliberal: indígenas defendendo territórios, ativistas ambientais criminalizados, mulheres lutando por autonomia reprodutiva ou comunidades que preservam saberes tradicionais. A estigmatização de movimentos sociais como "perigosos" ou "anti-progresso" ecoa a retórica das fogueiras: criar inimigos para justificar a exclusão e concentrar poder.
A conexão entre passado e presente revela um sistema que ainda depende do medo e da exclusão para se perpetuar. Mas também ilumina caminhos de resistência. As bruxas históricas, em sua rebeldia, nos lembram que a liberdade está na coletividade, na defesa dos comuns e na recusa à domesticação. Queimar bruxas foi uma tentativa de apagar alternativas; lembrar delas é reacender a chama da luta.
Fonte Imagem da capa: "La Agonía de la Madre Tierra" - Pedro Rafael González Chavajay, artista guatemalteco.
Bibliografia
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*Daniela Doms - professora e pesquisadora, Doutoranda em Economia Política Mundial, pela Universidade Federal do ABC, Mestra em Geografia Agrária pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia, Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Estadual de Londrina (UEL), desenvolve pesquisas críticas sobre as intersecções entre economia, agricultura, ecofeminismo e justiça socioambiental.
Como pesquisadora do Grupo de Estudos em Macroeconomia Ecológica (GEMAECO/UFPR), dedica-se a investigar temas como Economia Ecológica, Ecofeminismo e políticas públicas para transições sustentáveis, com foco na relação entre modelos agrícolas, desigualdades de gênero e crise climática.
É integrante da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (ECOECO), na qual foi membra da Diretoria Regional Sudeste no biênio 2022-2024, promovendo diálogos entre academia, movimentos sociais e gestão ambiental. É também membra da Frente Ampla Democrática Socioambiental (FADS), atuando na articulação de agendas coletivas contra a degradação ecológica e a exclusão social.