PEIXE DE HOMEM, MARISCO DE MULHER: REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO E APOIO ÀS MULHERES MARISQUEIRAS

Publicado em 23/12/2021

Título do Trabalho
PEIXE DE HOMEM, MARISCO DE MULHER: REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO E APOIO ÀS MULHERES MARISQUEIRAS
Autores
  • Fernanda Pacheco da Silva Huguenin
Modalidade
Resumo Expandido e Trabalho Completo
Área temática
GT 25 - Direitos Humanos, Diversidade e Ações Afirmativas
Data de Publicação
23/12/2021
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://www.even3.com.br/anais/xc22021/438679-peixe-de-homem-marisco-de-mulher--reflexoes-sobre-a-politica-de-desenvolvimento-e-apoio-as-mulheres-marisqueiras
ISSN
Palavras-Chave
Marisqueiras, Invisibilidade, Tecnologias de gênero, Identidade profissional, Políticas públicas.
Resumo
1. Introdução A pesquisa objetiva refletir sobre políticas públicas de gênero na pesca artesanal brasileira a partir do processo legislativo que culminou na criação da Política de Desenvolvimento e Apoio às Atividades das Mulheres Marisqueiras a partir da Lei Federal nº 13.902, de 2019. Propostas de políticas públicas para a pesca artesanal pelo viés de gênero são fundamentais para a superação da invisibilidade e da vulnerabilidade social das trabalhadoras. A falta de reconhecimento profissional das mulheres compromete o acesso delas a direitos fundamentais, com destaque para a seguridade social. Apenas a partir da Constituição de 1988 que as leis ordinárias fizeram menção indireta à presença feminina na cadeia produtiva da pesca artesanal, pela referência a outros integrantes que não o pescador, sobretudo na legislação relativa à previdência social. Entretanto, a produção da legislação pesqueira reforça determinados estereótipos, inclusive contribuindo para a manutenção da invisibilidade feminina. Em termos metodológicos, a pesquisa é uma abordagem sistemática e qualitativa da legislação acerca do reconhecimento profissional e identitário das trabalhadoras da pesca à luz da perspectiva crítica feminista. 2. Fundamentação teórica A invisibilidade feminina na cadeia produtiva da pesca artesanal é tema de estudos seminais no campo da antropologia (Woortmman, 1992; Alencar, 1993) e, recentemente, tem sido aprofundada em pesquisas interdisciplinares (Martinez e Hellebrandt [Orgs.], 2019), inclusive, a partir de uma abordagem jurídica (Mendes, 2019). A perspectiva de gênero em contextos de pesca contribui para a discussão de problemas como a desvalorização do trabalho doméstico e reprodutivo; a discriminação indireta em políticas públicas (Huguenin e Martinez, 2021); e a falta de reconhecimento da identidade profissional das mulheres. Em breve análise, é possível destacar que o trabalho feminino na pesca é pensado como simples “ajuda” em relação ao trabalho desenvolvido pelos homens. A separação e a hierarquização das atividades a partir de tecnologias de gênero (Lauretis, 1994) operam, tal como propõe Motta-Maués (1999), um verdadeiro “jogo das invisibilidades”, no qual as mulheres historicamente estão em desvantagem. No âmbito interno das comunidades, o trabalho feminino é eclipsado pela qualificação complementar e secundária que, por contraste, define a identidade do pescador, este sim legítimo detentor das artes do ofício e provedor da família. Externamente, a falta de reconhecimento ocorre pelas vias do Estado que, a partir de políticas inconsistentes, seccionam as identidades profissionais das trabalhadoras. A FAO acusa em recente relatório (2020) que cerca de 59,5 milhões de pessoas estavam envolvidos no setor primário da pesca e aquicultura no mundo em 2018, sendo 14% delas mulheres. Segundo os relatórios de 2012 e 2018 da mesma instituição, há subnotificação em dados oficiais acerca da presença feminina, o que tornam invisíveis cerca de 90% das pessoas que trabalham com as atividades denominadas secundárias, tais como o beneficiamento e o processamento do pescado. No Brasil, embora os dados sejam também escassos, o diagnóstico qualitativo dos problemas que afetam as mulheres indica um quadro de significativa desigualdade e discriminação. Como relata Brito (2019), essas trabalhadoras são predominantemente negras ou pardas, residem em áreas rurais, possuem baixa escolaridade e estão sujeitas à insegurança alimentar. Ademais, o trabalho desenvolvido é realizado em condições de precariedade, com exposição prolongada ao sol, em ambientes úmidos e sem condições ergonômicas. Além da baixa remuneração, as mulheres não são reconhecidas profissionalmente, isto é, não têm prestígio social nem no âmbito interno das comunidades, nem pelo Estado através de suas políticas públicas. 3. Resultados alcançados A Lei nº 13.902 foi sancionada em 13 de novembro de 2019 pelo presidente da República. Após a tramitação durante 04 anos no Congresso, o texto final foi promulgado com 05 artigos. Inicialmente, cabe ressaltar que o art. 1º dispõe sobre o objeto do referido dispositivo, a saber, “as reponsabilidade do poder público no apoio ao desenvolvimento das atividades desenvolvidas pelas mulheres marisqueiras.” No entanto, não qualifica quais são estas atividades. Em seguida, o art. 2º define marisqueira como “a mulher que realiza artesanalmente essa atividade em manguezais de maneira contínua, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, para sustento próprio ou comercialização de parte da produção.” Uma vez mais, a Lei não expõe de modo taxativo ou sequer exemplificativo que tipo de atividade, afinal, mulheres marisqueiras realizam em manguezais! Ademais, o texto reconhece que a Lei 13.902/19 tem caráter meramente “programático”, isto é, não cria direitos e nem obrigações. O art. 3º consigna que “cabe ao poder público estimular a criação de cooperativas ou associações de marisqueiras com vistas a estimular, por intermédio da participação coletiva, o desenvolvimento da atividade”, mas sequer prevê fontes de custeio ou vincula parcerias institucionais. Trata-se, pois, de um comando que expressa valores (o verbo “estimular” foi duplamente redigido) e sem qualquer aplicabilidade imediata. Apesar da situação de “extrema vulnerabilidade” das mulheres ter sido amplamente reconhecida ao longo de todo processo legislativo, é fundamental perceber que o projeto inicial sofreu considerável desidratação à medida que tramitou na Câmara e no Senado. Se a iniciativa original previa medidas como apoio creditício, capacitação de mão-de-obra e aquisição de equipamentos de proteção, o texto sancionado garantiu apenas a imprevisibilidade de efeitos. Além do mais, a própria definição de marisqueira merece uma reflexão crítica acerca da questão das identidades. Em comunidades pesqueiras, os homens são pensados como contumazes desbravadores das águas em atividades tão perigosas quanto heroicas, a partir das quais, por certo, constroem sua imagem de pescadores, mestre das artes e provedores da família. Já as mulheres têm que conciliar o trabalho exercido na pesca com o trabalho doméstico e reprodutivo. Neste sentido, separação e hierarquização conformam a divisão sexual do trabalho (Kergoat, 2009), na qual são separadas as atividade ditas masculinas das atividades ditas femininas. Em adição, o trabalho das mulheres é desvalorizado e classificado como secundário e complementar. Assim, é importante considerar a existência de um “jogo das invisibilidades” (Motta-Maués, 1999), no qual o trabalho feminino é discriminado tanto interna quanto externamente. Em outras palavras, a pesca é pensada como atividade predominantemente masculina desde o discurso público das comunidades até as políticas públicas para o setor. Deste modo, o referido “jogo” pode ser observado na construção da identidade dos pescadores em oposição à identidade das marisqueiras. Enquanto os homens são associados à pesca realizada mediante o uso de redes e de embarcações em longas jornadas no mar, as mulheres estão relacionadas à captura de moluscos e crustáceos executada por curto período de tempo em ecossistemas ligados à costa, como estuários, manguezais e praias. Na separação e hierarquia fundada pela divisão sexual do trabalho, o peixe é do homem, enquanto o marisco é da mulher. 4. Conclusões Neste sentido, a persecução do processo legislativo da Lei 13.902/19 até a sanção presidencial pode ser problematizada não só pela desidratação da proposta original, que suprimiu ações de investimento em educação, saúde e bem-estar, mas pelas limitações da própria lei em si, sobretudo pela definição identitária formulada sobre as marisqueiras. Além de não apontar as atividades desenvolvidas pelas trabalhadoras, a legislação identifica uma realidade bastante particular de mulheres presentes em comunidades pesqueiras baianas e que trabalham em mangues, apesar da diversidade de ecossistemas do país. Ademais, a Lei 13.902/19 não tem qualquer efeito prático, pois não estabelece obrigações e nem direitos. É possível concluir que as inconsistências presentes no dispositivo refletem a falta de consulta à população-alvo. Apesar da longa tramitação no Congresso, a Lei 13.902/19 exemplifica um tipo de produção legislativa caracterizado pela ausência de diálogo com a sociedade civil. Decisivamente, as reflexões aqui projetadas permitem considerar que a participação das marisqueiras, através das diversas associações e movimentos sociais constituídos no país, teria trazido ao processo de construção da política pública a ressonância de suas demandas. 5. Referências bibliográficas ALENCAR, Edna. Gênero e trabalho nas sociedades pesqueiras. In: FURTADO, Lourdes Gonçalves; LEITÃO, Wilma; DE MELO, Alex (Org.). Povos das águas: realidades e perspectivas na Amazônia. Belém: MPEG, 1993. BRITO, Carmem. Uma análise sócio-histórica da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP). In: MARTÍNEZ, Silvia; HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres na atividade pesqueira no Brasil (orgs.). Campos dos Goytacazes/RJ: EDUENF, 2019. HUGUENIN, Fernanda; MARTÍNEZ, Silvia. Mulheres na pesca: invisibilidade e discriminação indireta no direito ao seguro desemprego. Direito Público, [S.l.], v. 18, n. 97, abr. 2021. KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.) Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: UNESP, 2009. LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia de gênero”. In: HOLANDA, Heloisa (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. MARTÍNEZ, Silvia; HELLEBRANDT, Luceni. Mulheres na atividade pesqueira no Brasil (orgs.). Campos dos Goytacazes/RJ: EDUENF, 2019. MENDES, Beatriz. Redes invisíveis da pesca artesanal em Rio Grande: obstáculos e barreiras impostos às mulheres pescadoras na busca dos direitos sociais previdenciários. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Direito. Rio Grande, FURG, 2019. MOTTA-MAUÉS, Maria. Pesca de homem/Peixe de mulher(?): repensando gênero na literatura acadêmica sobre comunidades pesqueiras no Brasil. Etnográfica, v. 3, n. 2, 1999. WOORTMANN, Ellen. Da complementariedade à dependência: espaço, tempo e gênero em comunidades “pesqueiras” do Nordeste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1992.
Título do Evento
10º CONINTER - CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES
Título dos Anais do Evento
Anais do 10º CONINTER - CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

HUGUENIN, Fernanda Pacheco da Silva. PEIXE DE HOMEM, MARISCO DE MULHER: REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO E APOIO ÀS MULHERES MARISQUEIRAS.. In: Anais do 10º CONINTER - CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES. Anais...Niterói(RJ) Programa de Pós-Graduação em, 2021. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/xc22021/438679-PEIXE-DE-HOMEM-MARISCO-DE-MULHER--REFLEXOES-SOBRE-A-POLITICA-DE-DESENVOLVIMENTO-E-APOIO-AS-MULHERES-MARISQUEIRAS. Acesso em: 25/03/2025

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